Eu não disse?
Jornal O Estado do Maranhão
Chego em casa morto de fome (ninguém nunca está somente com fome, mas, sempre, morto de fome, não sei se leitor já observou esse fenômeno) e pergunto pelo almoço. Nossa colaboradora (colaboradora desde que o politicamente correto determinou que chamar alguém de empregada era humilhação punível com pesadas penas a serem cumpridas na penitenciária de Pedrinhas) apressou-se a dizer que eu iria almoçar ovo frito na manteiga. Ela mencionou, claro, outros pratos, como torta de camarão, o meu preferido. Mas, minha mente se fixou apenas no ovo e na manteiga. Minha reação foi instantânea e surpreendente até para mim mesmo. Abandonando minha postura no geral cordata e compreensiva e desatento à necessidade de não atiçar, com a colaboradora, a luta de classes, perguntei em voz alta, tentando parecer irônico: “Quer dizer que agora temos aqui, dentro de minha própria residência, uma conspiração para me encher de colesterol e me matar aos poucos? Eu, que praticamente acabei de fazer uma operação para a colocação de quatro pontes nas coronárias (aqui, exagerei um pouco, pois a cirurgia já tem um ano e sete meses), estarei sendo vítima de ataque traiçoeiro como esse? Ovo e manteiga? E de açúcar, ninguém quer me entupir? E doces e sorvetes, esses deliciosos alimentos tão discriminados, ninguém vai me oferecer?”
Antes de terminar o micro discurso, já estava arrependido, pois percebi o obsoletismo de minhas palavras. É que, condicionado por décadas de uma campanha solerte paga pelo capital internacional contra as galinhas brasileiras, em verdade contra as brasileiras, galinhas ou não, mas nunca contra as patas gordas, eu tinha esquecido da sentença médica que absolveu tanto o ovo galináceo quanto a manteiga feita de leite bovino. Tinha me escapado não só a mera liberação, pelas autoridades da saúde, desses dois produtos que, devo falar a verdade, adoro, como, também, a recomendação dos pesquisadores de colocarmos nossa paranoia de lado e comermos, à vontade, manteiga e ovo, mas, com o cuidado de preservar nossa galinha, patrimônio nacional. Imediatamente pedi desculpas à companheira colaboradora, com a esperança de, com essa atitude, alcançar pelo menos uma espécie de trégua no conflito de classes.
O certo é que, um dia, se pode comer certo prato, no outro não; às vezes, ele mata (devagarinho ou depressinha), outras, engorda e faz crescer e assim por diante. Se formos seguir todas essas recomendações e contrarrecomendações, acabaremos morrendo do estresse desse vai-e-volta alimentar, não da ingestão de comidas e bebidas não recomendáveis, sempre as mais gostosas. Quem sabe eu tenha desenvolvido placas coronarianas, que quase me mataram, sem nunca terem dado um assovio sequer de aviso, devido a essa confusão?
Pelo menos, se amanhã disseram que coca-cola faz bem para cálculos renais, faz passar dor de cabeça ou protege contra mau olhado – não duvide da possibilidade, caro leitor – eu poderei apontar o dedo e dizer para quem vive me acusando de ser viciado no refrigerante e de não querer largar o vício: Eu não disse seus bobos?
Comentários