Ensaio de Milton Torres
Jornal O Estado do Maranhão
Tenho aqui “A Epopeia Amazônica de frei Pedro de Santo Eliseu”, um estudo crítico, por Milton Torres, do poema épico “Viagem”, de autoria do frade carmelita, publicado pela Edusp, editora da Universidade de São Paulo. Um apógrafo localizado por Milton (autógrafo algum foi encontrado) nos Reservados da Biblioteca Nacional, de Portugal, serviu-lhe como texto de referência. O tema é a longa viagem em que os portugueses levaram prisioneiros espanhóis de Belém, rio Solimões acima, até Nova Cartagena, em 1714, a fim de devolvê-los a seus compatriotas, trinta e dois anos, portanto, antes do ano colocado pelo copista ao final do apógrafo (1746).Tão dilatado tempo entre a realização da jornada e o ano indicado pelo copista terá sido consequência das disputas pela posse do Solimões entre portugueses e espanhóis, não interrompidas pela da Paz de Utrecht – conjunto de acordos destinados a pôr fim à Guerra da Sucessão da Espanha (1701-1714) –, senão por breve tempo, tendo as contendas perdurado até quase a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que estabeleceu, na América, as fronteiras entre Portugal e Espanha.
Não se sabe quando a “Viagem” foi escrita: se logo após o retorno do frade a Belém, tendo o autor mandado fazer uma cópia em 1746; ou se foi terminada pouco antes deste ano, às vésperas do Tratado, quando as relações entre os rivais ibéricos já eram amistosas. Evidente, publicar a epopeia no período anterior, de incertezas, seria arriscar-se à acusação de cavalheirismo com o inimigo, pois o poema mostra clima amistoso entre os contendores.
Milton Torres analisou cuidadosamente a “Viagem” sob todos os aspectos relevantes a sua correta compreensão, sobretudo sua inserção no âmbito do universo mental português do século XVIII, ao fim do reinado de d. João V. Seu estudo se filia, assim, à corrente historiográfica conhecida como História das Mentalidades. Como ele observa, Os Lusíadas e As Metamorfoses, de Ovídio, estão evidentes como modelo do épico do frade.
Vejamos, “en passant”, algumas das características do poema analisado por Milton Torres. Nele, o monarca absoluto é perfeito e, por derivação, sua escolha do capitão-mor e de todos as pessoas da cadeia de súditos alocados à organização e realização da viagem confere-lhes virtude. Também, dado que a colônia americana não carregasse na memória coletiva feitos comparáveis aos dos portugueses no Oriente, forçoso é, no poema, a transformação, pelo frade, sempre fiel à épica portuguesa ali ancorada, do grande rio em “Mar Oceano”, da jornada fluvial, em marítima e das canoas, em baixéis. A despeito das convenções do gênero, porém, ele mantém as realidades locais, como no caso dos toponímicos.
Onde a realidade amazônica, no entanto, irrompe com força no épico de Santo Eliseu, em contradição com a retórica oficial, é nas referências à realidade do terrível tratamento dado aos índios, submetidos a evangelização pela “espada adamantina”, em trechos que seriam vetados, se submetido à costumeira censura oficial.
Estudo erudito, que repele a erudição estéril e vaidosa, objetivo e brilhante. Conjunto impressionante de referências literárias e históricas em curto espaço.
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