Sem um barulho desses

Jornal O Estado do Maranhão

          Machado de Assis gostava de dizer que suportamos com paciência a cólica alheia. De fato, as pessoas são compreensivas, quando não partícipes de situações em que, por exemplo, alguém reclama de ameaças ao exercício de direito assegurado a ele pela Constituição. Aí então, pedem calma ao reclamante mesmo ao custo, para a vítima, de a aceitação do conselho representar, na prática, a espoliação de um direito constitucional. Essa a situação dos moradores da área onde moro: paciência, diziam os que moram longe daqui.
          Tal reflexão me ocorreu quando li a notícia de decisão tomada, em Apelação Cível, pela Primeira Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Maranhão, confirmando decisão de primeira instância, em que funcionou como relator o desembargador Jorge Rachid Maluf. O Apelante era a casa noturna Chinelo de Dedo, encravada em área residencial, à avenida Joaquim Mochel, no Cohatrac IV, e os Apelados, Maria Celeste Gonçalves de Jesus e outros. Estes são moradores do entorno do estabelecimento. Eles ingressaram na Justiça contra a poluição sonora causada pelo Chinelo: tloc, tloc, tloc. O Juiz de Direito da 8ª Vara Cível da Capital, Luiz Gonzaga Almeida Filho, julgou procedente o pedido para determinar o fechamento do estabelecimento. A casa noturna apelou.
          Uma das pragas mais disseminadas em São Luís é exatamente essa. Falo daquele tipo de poluição sonora cujos causadores são pessoas que, por estarem tocando seu trabalho, se acham no direito de estabelecer regras próprias de comportamento, com desprezo pelas leis. De outro ângulo, se estas não são cumpridas porque o criminoso é pobre, caso em que, como proclamado muitas vezes por ideólogos do monopólio da sensibilidade social, o criminoso deveria ser automaticamente perdoado; ou, ao contrário, porque é rico e, em o sendo, não precisaria do sistema legal na defesa de seus legítimos interesses, admissão involuntária, parece-me, de que usar o poder econômico pessoal é valido, se o objetivo é se sobrepor aos demais cidadãos, por cima da legislação, se a lei não é cumprida, eu dizia, e aceitamos passivamente desrespeito como esse, então melhor seria voltar às cavernas, onde a vontade do mais vicioso prevalecia.

          A poluição sonora, como a morte repentina, não escolhe local para dar as caras. Ocorre nos chamados bairros populares e nos dos “endinheirados”. Os moradores da área onde moro reagiram a partir de 2012 contra uma situação como essa e vencemos a luta. Tenho notado que reagir não é regra geral. Muita gente prefere aguentar calada, sofrer noites mal dormidas, sujeitar-se a estresse prolongado, que lhe prejudica a própria saúde, do que reclamar da afronta.
          Quando, na ocasião, tomamos medidas legais contra os desmandos perturbadores, alguns conhecidos me perguntavam quem era o padrinho político do criador do incômodo. Eu dizia não saber e, mesmo, não acreditar haver um. Eu adicionava à minha resposta desejar, apenas, saber se nossas reclamações estavam respaldadas por uma fumacinha de bom direito e de provas aceitáveis numa corte de Justiça, porque, na esfera administrativa nada obtivemos de 17 órgãos públicos federais, estaduais e municipais, exceto do Iphan-MA. Parte do preço a pagar é receber, como recebi, e-mails ameaçadores, supostamente anônimos.
          Contudo, há, sim, esperança de mudança. Exemplo a animar nossas expectativas é a posição do desembargador Jorge Rachid, na apreciação da acima referida Apelação Cível. Vejam o final de seu voto: “Entendo que o fim de tais ações não deve ser necessariamente o fechamento da casa noturna, [...] mas, reduzir a níveis aceitáveis o volume das potentes aparelhagens de som, geradoras de perturbação, intranquilidade e outros prejuízos à saúde, porém, quando não se consegue esta diminuição, pode haver sim o fechamento do estabelecimento. [...] Assim, deve prevalecer no caso o interesse público, mantendo-se a sentença que determinou o fechamento do estabelecimento, razão pela qual voto pelo improvimento do apelo”.
          Esperamos possa esse entendimento firmar jurisprudência e possamos dormir sem um barulho desses.

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