Para entender o ataque ao Charlie Hebdo, leia Michel Houellebecq

Assim que foi divulgada a notícia do atentado terrorista islâmico ao jornal Charlie Hebdo em Paris, as análises já começavam a declarar: o ataque nada tem a ver com o islamismo – e mais, devemos nos preocupar agora com a “xenofobia”, “islamofobia” e o “fanatismo religioso”… do Ocidente, que seria “intolerante” com os muçulmanos.
Quase nenhuma palavra sobre o islamismo não ser propriamente uma religião, mastambém uma espécie de “sistema social”: religiões como budismo, cristianismo e judaísmo possuem princípios e, sobretudo, modelos arquetípicos (mitos) de atuação pública.
O islã é um jin, um modo de vida, todo um construto pessoal, social e cósmico, que não pode ser traduzido apenas como “religião” – por isto é defendido por estudiosos como uma doutrina que deixa menos margem para interpretação do que o cristianismo ou o judaísmo. “Muçulmano” (muslim) é particípio ativo de aslama, significando “aquele que se submete”. A lei islâmica, a shari’ah, é clara em seus aspectos civis – se o judaísmo, tribal e nômade em busca de um reino, passava princípios de conduta, não passava leis escritas civis e uma concepção total de sociedade, como o islamismo faz.
O filósofo Roger Scruton resume o problema que não está sendo discutido pela mídia ocidental: “O conflito fundamental é entre, de um lado, uma religião que deseja ser também um sistema completo de governo fundada em um Direito sagrado e, do outro, sociedades que, enquanto fundadas em uma revelação religiosa, fazem suas Leis e seu governo para si mesmas. O Islã não pode aceitar a jurisdição secular e não pode tolerar formas de governo que marginalizem a obediência religiosa. Por isso não pode, no fim, aceitar o mundo moderno.”
Há então aqueles que possuem visões seculares ou religiosas que permitem uma jurisdição secular, e aqueles que querem impor a shari’ah, tornando-nos a todos “muçulmanos”, ou seja, “submetidos”.
Submissão é o nome do novo livro de Michel Houellebecq, o ultra-polêmico escritor mais lido da França. Houellebecq estava na capa da última edição do Charlie Hebdo antes do atentado terrorista. Estes são os pontos que os jornalistas e palpitaristas não ligaram.
Faltam ainda alguns pontos, na verdade, caso nossa classe falante cheia de opiniões conhecesse seus livros.
Houellebecq escreveu, em Partículas Elementares, de 1998, que o islamismo “é a mais estúpida das religiões”. Foi processado por duas associações islâmicas na França. Ganhou ambos. No livro Plataforma, de 2001, resolveu repetir a mesma frase. Com umspoiler que estraga a surpresa do fim da trama, o livro termina com um atentado terrorista islâmico. Para mostrar que não concordavam com o autor, os seus próprios editores resolveram ir a uma mesquita numa manhã para serem fotografados em paz com os muçulmanos. Na volta, sentiram um clima estranho. Era a manhã do dia 11 de setembro daquele ano.
Alguns nascem para serem mais profetas do que o profeta que atacam. A trama dePlataforma passava por vários países famosos pelo turismo sexual, como Cuba. O atentado do fim do enredo ocorria na Tailândia. Em outubro do ano seguinte, um atentado extremamente similar ao descrito no livro ocorreu de verdade na Indonésia.
Gunmen kill 12 at French magazine Charlie Hebdo
Mais de treze anos depois, sendo capa do Charlie Hebdo e na mesmíssima manhã em que os olhos do mundo se voltaram para o atentado na sede do jornal, a Folha de S. Paulotrazia em seu caderno Ilustrada a chamada: “Novo Houellebecq estimula guerra ideológica na França”. O artigo trata de Submissão, que narra a ascensão de um Partido Islâmico num futuro próximo na França, ganhando apoio por ser contra a Frente Nacional de Marine Le Pen, chamada de “extrema-direita”.
Pouquíssimas horas depois, a sede do jornal sofria com o atentado terrorista que matou 12 pessoas. Logo a seguir, começavam as críticas não contra o extremismo islâmico, mas contra a suposta “extrema-direita” – que passa a considerar “extrema-direita” qualquer um que… rejeite o extremismo islâmico.
A discussão se focava na “provocação” que o jornal rotineiramente fazia contra o islamismo. Todas as religiões eram satiradas pelo jornal, mas apenas os muçulmanos se ofendiam – e já haviam deixado bombas na redação do Charlie Hebdo em 2012.
Tal lugar-comum esconde suas premissas: como destacou o jornal Gazeta do Povo em editorial após o primeiro ataque ao Charlie Hebdo em 2012, “quando o critério é o potencial de perturbação da paz pública, indiretamente se passa a mensagem de que ofensas às religiões cujos seguidores são mais pacíficos seriam mais aceitáveis que ataques a crenças cujos fiéis historicamente reagem com violência.”
Ou seja: o problema está muito menos na ofensa do que nos ofendidos.
Estranhamente, tais críticas, que vêem os muçulmanos como “vítimas” sociais dos europeus, costumam partir de pessoas que nunca se incomodam em satirizar sardonicamente a religião cristã – mesmo os evangélicos, dissidência que costuma crescer nas periferias mais pobres do Brasil. Contra os evangélicos, seu “fanatismo” vira motivo de piada. Contra os muçulmanos, “ofendê-los” vira crime de ódio… porque eles costumam matar quem os ofende.
Se é para coibir “ofensas” a grupos “sensíveis”, precisaremos definir o que é sensível, e para quais grupos. É um principal liberal, de sociedades abertas e livres, de que ninguém tem o direito de não ser ofendido. Nas palavras de John Stossel, “quando se ofender dá poder, as pessoas se ofendem mais facilmente”.
Ser ofendido virou arma de guerra – até assassinar inimigos se torna algo justificável por milhares de pessoas. Uma sociedade aberta não pode ser um jin que use a shari’ahislâmica para lançar uma fatwā (opinião legal) contra alguém, como sofreu Salman Rushdie após o lançamento de Versos Satânicos, livro acusado de apostasia (Rushdie confessa que renegou o islamismo). Rushdie foi condenado à pena de morte em diversos países muçulmanos, e grupos mais literais prometem assassiná-lo em qualquer lugar caso o encontrem.
É o poder de “se ofender” – coisa com a qual a imprensa brasileira mais está preocupada, afirmando que Charlie Hebdo “não deveria” ofender o islamismo (bacon, feminismo, biquíni, Monty Python, eleições livres, Richard Dawkins e pornografia sueca também o ofendem), sem nunca afirmar que “não se deve” ofender outras religiões que não revidem violentamente.
Salman Rushdie, hoje, seria considerado um “ofensor”, um “xenófobo”, um “islamofóbico”. Talvez até alguém de “extrema-direita”.
Se é para proibir o que ofende, devemos começar pelas livrarias. Perguntar não ofende. Michel Houellebecq ofende. Seus livros são ácido puro, e não sobra ser “não ofendível”.
Partículas Elementares, seu livro mais conhecido (talvez antes de Submissão, já famoso antes de ser lido), narra a história de dois irmãos em reencontro, Michel, físico que vive de abstrações científicas, e Bruno, professor de literatura em desespero, que recai numa espiral de orgias para escapar de si próprio.
Os alvos da obra são Deus e o mundo: ofensas ao Deus cristão aparecem desde a primeira página, em que Michel se pergunta se uma moça que demora no carro “se masturba ouvindo Brahms”. Descrições de sexo grupal com desconhecidos em inferninhos, palavrões os mais cabeludos em qualquer discussão, relatos de bebedeiras em velórios, todas as formas de blasfêmia possíveis.
Mesmo Michel, personagem incapaz de sentimentos (que o narrador sutilmente descreve como “seu p… servia apenas para mijar”), é um materialista de vida e visão nada cristã – um diálogo seu com um padre, em que faz um paralelo entre a união eterna de um casamento e os spins invertidos de átomos deixaria qualquer cristão de cabelos em pé. Bruno ultrapassa todas as raias do ofensivo, ironicamente, num acampamento hippie, aquela coisa do “é proibido proibir” “live and let die” que a esquerda gostava tanto. As ofensas vão a todos, sejam cristãos, rosa-cruzes ou danças africanas, mas com um apreço especial por falar mal do Brasil – o que fez com que Houellebecq fosse muito criticado no Brasil, confundindo realidade e ficção e a voz de um personagem com a opinião do autor. As poesias explícitas que escreve no antro de libertinagem são impublicáveis.
Isto é o que se lê em Houellebecq – e é este autor que está sendo acusado pela esquerda francesa de ter escrito um livro “de presente” para Marine Le Pen (bobagem: a candidata loira não deve gostar muito do que Houellebecq fala sobre seu pai em Plataforma). A esquerda, surgida na França de Marquês de Sade e Robespierre, hoje aceitaria proibir Os 120 dias de Sodoma ou A Filosofia na Alcova para evitar ofender quem quer impor uma tirania muito mais moralista do que qualquer Ancien Régime.
Já no Plataforma de Houellebecq, vemos um funcionário público que de repente fica rico – e torra sua nova fortuna com turismo sexual pelo mundo. Se em Partículas Elementares (e no seu romance de estréia, Extensão do Domínio da Luta) o islamismo só aparece de passagem, pela presença de imigrantes em bairros afastados, aqui vemos o mundo do século XXI em todas as suas cores, com o hedonismo ocidental de um lado sob um fundo de culturas bárbaras mendigando suas moedas – para então criticar sua “exploração” e “imperialismo”.
Como nas obras anteriores, também há o feminismo de ricas sem outras preocupações considerando-se defensoras dos oprimidos por terem discursos moralistas. Há a confusão política, que não se encaixa no binarismo “esquerda e direita” de pensadores críticos que juram que a “transcenderam”, justamente por quererem reviver o idealismo soviético. Estão lá pessoas com formação que tateiam um complexo vocabulário científico sem saber do que falam e intelectuais que só são respeitados por qualquer um que não saiba reconhecer um intelectual, e a posição de escanteio para a qual foi relegada a religião em um mundo fragmentado.
É, em suma, o “nosso” mundo. Ainda que suas tramas dêem muito valor a sexo e situações vexaminosas – de ereções incompletas a posições que não dão certo – Houellebecq é muito mais capaz de contar a cisão entre prazer e dever, poder e liberdade do homem contemporâneo em um mundo amoral, sem objetivo, multicultural e de problemas desconhecidos de poucas décadas atrás.
A literatura brasileira já há muito não reflete o mundo em que vivemos, com raras exceções que vêm saindo do desconhecimento nos últimos anos. Há raríssimos livros sobre os conflitos interiores de quem sofreu o desencanto com o discurso da salvação pelo Estado, dos petistas ricos (a “esquerda caviar” de nosso Rodrigo Constantino), da nossa corrupção, do progressismo, da descrença profana que causa a desconsolação atual. Nossa literatura ainda só fala de ditadura militar.
Houellebecq vai na contramão desta alienação. O terrorismo freqüentou pouco a literatura do século XX (um ápice provável foi O Agente Secreto, de Joseph Conrad) – e as conclusões a que ele nos obriga a chegar não são tão agradáveis para os lugares-comuns de nossas discussões públicas e políticas. Não existe “o bom selvagem”, e nem o “imperialismo” e “colonialismo” são capazes de explicar qualquer conflito real dos homens vivos – e as situações de personagens humanos nem sempre têm o certo e o errado claramente definidos.
Como o próprio autor afirma sobre as conseqüências de Submissão, “uso o recurso de assustar”. Seus livros assustam por mostrar o que será a França sob a shari’ah e como é ver o terrorismo de perto. Já os terroristas assustam por ameaçar nossos pescoços, tornando o islamismo mais obtuso uma proposta que não podemos recusar – a ascensão brutal do islamismo pelo mundo pós-11 de setembro fala por si, sobretudo suas vertentes mais assustadoras de ISIS, H’zbollah, Boko Haram, al-Qaeda, Hamas e afins – que parecem tão palatáveis à esquerda.
Mesmo em obras de ficção científica, como A Possibilidade de uma Ilha (2005), cantada até pela ex-primeira dama Carla Bruni, Houellebecq ainda é profeta (o personagem humorista causa indignação com piadas como “Qual o nome da camada de gordura ao redor da vagina? Resposta: mulher”), e narra um futuro da humanidade para reconhecermos os riscos de sermos humanos como somos.
Houellebecq é ofensivo, por isso está na mira de cabeças desejadas pela al-Qaeda. É assim porque é livre – porque sua arte é ficção e porque a ficção serve também para nos fazer sentir mal com nossa condição e nossas possibilidades. E porque simplesmente tudo pode ofender alguém – experimente dizer a verdade para um corrupto, ler Henry Miller do lado da sua avó ou defender a vida diante de um assassino.
É assim que somos – ofensivos, com orgulho. E a ofensa tem se tornado a arma política mais poderosa do mundo. Cada um que se declare “ofendido” parece ter salvo conduto para tudo contra seus ofensores – e ninguém se lembra de perguntar se um tiro de fuzil ofende mais do que uma piadinha com religião (os judeus são campeões de piadas com judeus; não, não contra os “opressores”, e sim tornando até o Holocausto algo superado em suas memórias). Não há muitos relatos sobre islâmicos que “ofendam” em seu jin – fora os que cortam cabeças, claro.
Além de criar um índice de opiniões, roupas, crenças, livros, filmes, roupas e até ironias permitidas, não parece ser afeito a uma sociedade livre se preocupar em quem vai se ofender com o que dizemos ou vemos.
Ou ultrapassaremos o ponto em que mortes ocorrem e se discute se os assassinos eram “ofensivos”.

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