Texto de Luiz Alfredo Raposo
Amigos, se tiverem a paciência de me tolerar mais uma, peço que leiam ou releiam esse trecho de um escrito meu de 4 anos atrás. Bem que eu gostaria de verificar que errei. Infelizmente, verifico que acertei até nos detalhes. Só a volta de Lula não se concretizou. Ainda. O jovem gênio oposicionista a que me refiro no texto quem vocês acham que seja?...
Abs,
Luiz
1. O desmanche ético
Para concluir, devo tocar o nervo mais sensível e inquietante do petismo no poder, sua conduta ética. Mas, para isso, preciso começar de muito antes. O PT nasceu como um partido de massas puro e intransitivo. Seu programa? Uma mistura de sindicalismo clássico e socialismo fabiano, com itens como valorização sistemática da renda salarial, redução da jornada de trabalho, autonomia sindical, reforma agrária, fortalecimento do Estado como empresário e como interventor no mercado, imposto sobre grandes fortunas, restrições à ação dos “grandes negócios”, em particular à banca e ao capital estrangeiro sob todas as formas etc. E suas disposições de espírito, seu ethos? Um ethos moralista e por assim dizer anti-político, de quem está aparentemente menos preocupado em chegar ao poder do que em denunciar os pecados do agir político tradicional: a associação entre a política e os “grandes interesses”, a corrupção, a complacência com o regime militar então vigente etc. E assim botaram eles o pé na estrada: com um programa na cabeça e nenhuma intenção de compromissos ou alianças com o Establishment. E a face ética encontrou, naquele período final de decadência do regime militar e de prostração econômica, uma enorme demanda insatisfeita. Era ela que fornecia as principais bandeiras para a militância e por pouco não obscureceu de todo a face programática.
E os primeiros arraiais petistas além-ABC ergueram-se justamente no solo da indignação moral dos médios e baixos estratos da classe média urbana. Ou, como diz um amigo meu, formaram-se com viajantes da “barca dos enojados” (naquele tempo, ainda não havia povo, não havia lumpen). Esse eleitorado terminou por representar 30%, ou seja, quase um terço do universo votante. O que foi suficiente para botar Lula no 2º turno contra Collor, em 89. E garantir para o PT uma barulhenta “banda de música” no Congresso.
Com a débâcle do socialismo real, as “tendências” formadas pelos antigos militantes leninistas e trotskistas (que eu vou classificar genericamente sob o rótulo de “bolcheviques”), até então precariamente homiziadas, “passando chuva” no PT, resolveram desistir do ideal socialista. Desistiram do que agora consideravam, não indesejável, mas inalcançável no horizonte histórico. Aderiram à linha reformista do partido e, ao cabo de alguns anos, se tornaram hegemônicas. E foi sob o comando desta banda, que o partido abandonou seu isolamento em favor de uma política de alianças com a “direita”, e terminou chegando ao poder em 2002. Deu certo, mas, ponto igualmente de notar, que mudança radical de estilo! Antes, na sua fase virginal, o PT foi a vítima preferida, o cordeiro de sacrifício de mais de uma das “armações” da direita. Com a nova direção, que inusitada, criminal bruteza de jogo se inaugurou! E para prova disso, basta recordar alguns fatos:
· no segundo governo Fernando Henrique, pipocaram pelo país inteiro boatos ou denúncias de que gente graúda nas prefeituras em mãos petistas estaria arrancando um “mensalão” de concessionárias de serviços públicos municipais (em particular, no transporte público e na coleta de lixo), em troca de “facilidades” na celebração ou renovação de contratos. E as “facilidades” incluíam, quase sempre, o superfaturamento de preços. Um desses casos, o de Ribeirão Preto-SP, ficou célebre, anos depois, quando as investigações foram levadas à esfera judicial e desencadearam episódios que culminaram com o afastamento do ministro (e ex-prefeito) Antônio Palocci. Sim, o grande Palocci, com todo aquele ar seráfico de frade capuchinho italiano das Santas Missões! O curioso era a coincidência de o filme ser o mesmo. E de a “justificativa” supostamente dada pelos tais graúdos para semelhantes achaques também ser idêntica: arrecadar dinheiro para a próxima campanha presidencial. A ser verdade, havia método naquelas roubalheiras. Tudo se passava como se os generais petistas, constatando a indisposição dos doadores privados para com o PT, naquela época, tivessem emitido uma diretiva secreta aos dirigentes municipais, no sentido da ordenha dos cofres municipais via concessionários de serviços públicos.
· Pouco depois do choque com o assassinato do prefeito de Campinas-SP, Toninho do PT, em circunstâncias nunca esclarecidas, em princípios de 2002 o país recebe horrorizado a notícia do seqüestro e morte do prefeito de Santo André-SP, Celso Daniel. As investigações policiais conduziram ao indiciamento de uma quadrilha ligada ao PT, que atuava dentro da prefeitura, extorquindo “dinheiro de campanha” às empresas de transporte coletivo. Depõem os próprios familiares de Celso Daniel que este teria perdido o controle sobre a gang e tentado afastá-la, o que levou a sua morte. Que os familiares falavam sério é prova suficiente (embora de modo nenhum necessária, depois dos assassinatos em série que se seguiram ao de Daniel...) o fato de que alguns deles se auto-exilaram e vivem fora do país até hoje. E o caso continua sub judice (as apurações contra gente do PT nunca chegam ao fim, já notou?).
· Em princípios de 2000 (acho que foi isso), Zé Dirceu deu o grito, mandou os militantes “baterem nos opositores, nas urnas e nas ruas”. A palavra de ordem foi seguida à risca: por ocasião de uma manifestação de professores estaduais em greve, na periferia de São Paulo, agentes petistas feriram com porretes improvisados a cabeça inteiramente glabra do governador Mário Covas, já marcado então pela terrível doença que o mataria logo depois. A ação tinha um estilo que não podia deixar de lembrar o dos grupos da SS nazista ou o dos “camisas negras” de Mussolini, tais como descritos nos livros de História. A impressão que ficava era de que se estava tentado inventar um fascismo de esquerda no Brasil.
· Inicia-se o governo Lula, e logo fica claro o projeto do PT de controlar, com gente sua, os fundos de pensão das estatais: Previ, do Banco do Brasil; Petros, da Petrobrás; Funcef, da Caixa Econômica etc. etc. As notícias se sucedem, algumas dando conta de tenazes resistências de parte dos empregados. E são completadas por esta outra: a ofensiva estava sendo comandada em pessoa pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares (que, algum tempo depois, o país viria a conhecer como o executivo do mensalão). Ora, o fato em si era estarrecedor. Os fundos de pensão têm um porte econômico gigantesco. Somados, representam mais do que a Petrobrás. O patrimônio da Previ supera o do Banco do Brasil, e ela é o maior investidor institucional do mercado de capitais brasileiro. E, sobretudo, um fundo de pensão é uma entidade puramente financeira: tudo o que faz é receber o dinheiro das contribuições dos empregados e do patrocinador, aplicá-lo em títulos de dívida e ações, participar dos conselhos de administração de algumas empresas das quais é acionista e pagar as pensões dos associados inativos. Qual o sentido de politizá-los? Mais: que diabo queria o tesoureiro do PT com tais entidades, qual seu interesse em ter poder sobre essas montanhas de dinheiro? Foi a pergunta que ficou e que, hoje, à luz do mensalão, a gente sabe melhor como responder. O certo é que o “aparelhamento”, com uma ou duas exceções, foi efetivado. É provável que não tenha dado o resultado sonhado por Delúbio porque os empregados continuam lá dentro, cuidando do que lhes pertence. Mas, com certeza, não terá ficado apenas nos confortáveis salários recebidos pelos companheiros lá aboletados. Um dia, quando o PT estiver fora do poder, vai-se poder conhecer o tamanho da conta. Prepare seu coração...
· Mal entrara o governo em seu segundo ano, e eis que estoura o escândalo do “.mensalão”. E o que era ele? Uma tentativa de obter, por um processo novo, “nunca antes” visto no país, uma maioria estável na Câmara dos Deputados (os petistas recusam o prêmio de originalidade, dizem ter-se inspirado num “mensalinho” feito antes em Minas). Sabemos todos (nem é o caso de entrar em detalhes) que, no estatuto político desta Nova República, vincado pelo multipartidarismo à outrance e pela liberdade quase absoluta do mandato legislativo frente à hierarquia partidária, a ideia de “base de apoio parlamentar” adquiriu um sentido novo, algo insólito. Na acepção clássica, válida para as democracias maduras de hoje, constitui ela um corpo uni ou pluripartidário disciplinado, cujo comportamento se prevê com alto grau de precisão. Aqui ela se “reduz” a algo muito mais precário, ao conjunto de parlamentares “conversáveis” pelo Executivo. Um mercado persa, onde nada está de antemão decidido. E onde tudo se negocia, do torpe ao sublime. Em geral, participam desse mercado os parlamentares inscritos num dos partidos que ajudaram a eleger o governo. De fora fica a oposição, os iconversados e inconversos. No mensalão que se fez? Em lugar da negociação com seus resultados conhecidos (partilha de cargos, compromisso com projetos, liberação de emendas, facilidades para negócios particulares com órgãos públicos), achou-se melhor o muito pior por excluir a priori toda possibilidade de grandeza: assalariar esse apoio, transformar parlamentares (do “baixo clero”!) em serviçais e retribuí-los com uma “mesada” de valor variável conforme sua “importância”. A “folha de pagamento” assim organizada compreendia meia centena de parlamentares, a maioria do chamado baixo clero, inscritos em siglas formalmente aliadas ao governo. E a regra era clara: votou com o governo, recebeu; não votou, nada de mensalão! Restava um problema: e de onde viriam os recursos para a cobertura de uma “despesa” que o orçamento público não podia prever? E como distribuí-los sem dar na vista? Da solução foi encarregado o tesoureiro do PT. E ele se houve “brilhantemente”, pois a engenhoca que construiu funcionou sem tardança. Interessante escolha, o encarregado tinha cara de açougueiro, e nome que parecia anunciar um destino, parecia termo técnico tirado do Código Penal...
· Apesar da primariedade da tramóia, tudo andou sem tropeço até a denúncia do dep. Roberto Jefferson (presidente de uma das siglas enredadas que se sentiu bypassado). Criou-se uma comoção nacional, instalou-se CPI, mas o governo não deixou que as investigações prosperassem. Tudo não passava de tentativa de golpe. Mensalão não existe!, decretou o presidente. Extraordinário não-acontecimento que todo mundo viu, menos Lula. A senadora Marina, à época, do PT, declara hoje, 11/08/10, ao UOL sobre o triste episodio: “nem todos praticaram erro”. Não praticaram, mas viram, como a declaração da senadora, em cândido estilo bíblico, deixa claro. O delito (tentativa de assassinato de um dos poderes da república, nada menos que isso) foi vastamente documentado com a descoberta de um canal regular entre algumas “contas pagadoras” e uma série de parlamentares. Alguns terminaram perdendo o mandato. Mas nunca se conseguiu apurar ao certo de onde veio o dinheiro. Delúbio, apertado de mil maneiras e expulso da direção partidária, foi de uma frieza “bárbara”, diria uma admiradora, de sua boca só saíam sorrisos gelados. Comportou-se como era de esperar de um herói petista. E a origem dos recursos ficou até hoje envolta em trevas. Uma operação deveras tenebrosa...
· Mas, ainda assim, as evidências recolhidas foram suficientes para levar o país (e a Câmara dos Deputados) à convicção de que o esquema tinha sido comandado desde a Casa Civil, instalada no próprio Palácio do Planalto, em gabinete ali juntinho ao do presidente!!! E José Dirceu não apenas foi demitido da chefia da Casa Civil, como teve cassado seu mandato de deputado. E é paradoxal como esse “acidente” talvez tenha resultado benéfico tanto a Dirceu quanto ao próprio PT. Longe do poder formal, ele encontrou um ambiente mais propício a seus dotes: a queda para agir na sombra, o gosto pela bruxaria política, a saliva, digamos, ofídica... E pôde, assim, seguir melhor seu destino de Golbery do PT. Golbery na alma e na figura (compare-lhes as fotos mais recentes, repare-lhe o ar de filho, sobrinho, meio-irmão temporão, sei lá. O mesmo sorriso sardônico e até o traço facial mais característico do velho general, aquele olhar de raposa do Ártico...). E, assim como nas primeiras diabruras do neo-PT, suas digitais, para quem sabe ver, aparecem mal-disfarçadas nas mais recentes.
· Já falei do “aparelhamento” da máquina pública promovidos pelo PT, num grau insólito na história do país. Falei também do estilo de propaganda típico dos petistas, focado não exclusivamente em suas realizações, mas também em tentativas enganosas de apresentar projetos ainda em perspectiva como se já fossem obras reais ou de se apropriar de realizações de governos anteriores; na mentira como sistema, com a detratação das pessoas e dos feitos dos adversários e os boatos maldosos contra os competidores, quando das campanhas eleitorais. Entro, agora, noutro assunto, dentro da mesma linha, embora incomparavelmente mais pesado: a atração fatal pelos “dossiês”. Começou em 2002 com o famigerado dossiê “Grand Cayman”, com acusações seriíssimas de locupletamento contra o ex-presidente Fernando Henrique e seus colaboradores mais próximos, no programa de privatizações. Como se viu logo depois, tudo forjado, da capa à contracapa. E feito com uma crueldade tamanha, que não excluiu nem gente falecida como o ex-ministro Sérgio Mota. No primeiro governo Lula (ou foi no segundo?), surgiram indícios de que estaria havendo um verdadeiro carnaval com os cartões de crédito corporativos de responsabilidade do gabinete presidencial, inclusive os utilizados por familiares do presidente. O pessoal do governo, na tentativa de intimidar os parlamentares da oposição, empenhados na elucidação do caso, não se inibiu de fazer carga contra alguém tão respeitável quanto a falecida ex-primeira dama, dona Ruth Cardoso: ameaçou “entregar” os extratos de despesas supostamente feitas por ela, quando primeira-dama, pagas com os mesmos cartões. Puro blefe, a reação, como seria de esperar, foi de uma dignidade arrasadora: dona Ruth declarou que não só autorizava como exigia do governo a divulgação dos tais extratos. E sugeriu ainda que o governo, para deixar tudo em pratos limpos, fizesse o mesmo com as despesas correspondentes pela quais fosse responsável. Quem disse que o governo topou? Fez, sim, tudo o que foi preciso para pôr uma pedra em cima do caso. E a chantagem lhe saiu pela culatra.
· Em 2006, a “jogada do dossiê” foi reeditada pelos tais “aloprados”, dessa vez contra o então candidato ao governo de São Paulo, José Serra, e seus familiares. Novamente, forja de cabo a rabo. E tão mal-feita que até o presidente se disse incomodado. Pois não é que, agora, eles voltam à carga, e apelando para um recurso ainda mais sujo, o de espiar pelo buraco da fechadura a vida particular de dirigentes tucanos, como o vice-presidente do partido, Eduardo Jorge, e da filha de Serra! Para isso tentam comprovadamente contratar um ex-araponga do SNI. E determinam a uma funcionária da Receita Federal filiada ao PT que ela quebre o sigilo fiscal dessas pessoas e tire cópias de suas declarações de renda para “compor” o dossiê. E a moça faz o “serviço”!
· Como eu já recordei, no começo o PT rejeitava alianças (em 92, Erundina foi expulsa porque aceitou participar da idéia generosa que foi o governo de união nacional proposto por Itamar). Mas a partir de fins da década de 90, deu uma guinada radical, adotou uma política de alianças “ampla, geral e irrestrita”, que não termina de surpreender. Depois do mensalão, então, nem se fale! Alarmado o país com a enormidade daquela “inovação”, eles tiveram de voltar ao tradicional. Mas aí, inauguraram um estilo novo de fazer o velho. Todos, sem exceção, foram convidados para a seara petista e para o banquete do poder. E só os mais éticos, os inconquistáveis, no seu apego a coisas meio peremptas como história, princípios, altivez resistiram. Na verdade, a “coordenação política” do governo lulista transformou-se na maior máquina de cooptação de que se tem notícia no país. Basta ver o “arco” de siglas e o “álbum de figurinhas” que formam a coligação de apoio a Dilma. O arco é o arco-iris e o álbum..., bem, a associação com os Sarney já vem informalmente da primeira eleição de Lula. E virou eterna como o amor, quando da crise da mesa diretora do Senado de 2009. Naquela ocasião, acuado pela opinião pública e pela maioria de seus pares, inclusive os petistas, por sua conivência com as irregularidades descobertas no setor administrativo do Senado que ele presidia, o sen. Sarney só se salvou graças a Lula. Este interveio diretamente na sua bancada de apoio, fez o PT mudar de posição da noite pro dia, fez o líder da bancada desdizer da tribuna o que, na véspera, dissera da tribuna, e Sarney terminou escapando da destituição, ou, quem sabe, até da cassação.
· A aliança com os Sarney chega, agora, ao seu coroamento (outros dirão ao cúmulo) com a intervenção do PT no diretório estadual do Maranhão, em reação à recusa de apoio dos petistas maranhenses à reeleição de Roseana (a troco do apoio do PMDB a Dilma). E se estende não só a outros caciques peemedebistas, como os insignes Renan Calheiros, Jáder Barbalho e Romero Jucá, mas ao próprio ex-presidente Collor, candidato ao governo de Alagoas. A chamada fina flor das forças progressistas... Lula e Collor, aliás, andam nestas eleições confessadamente contrariados por não estarem, em virtude da lei, podendo casar de papel passado, aparecer unidos no palanque e na propaganda eleitoral.
Os fatos são tão repetitivos e tão chocantes que não posso evitar arriscar uma hipótese explicativa. À primeira vista, a “nova política” patrocinada pela tendência bolchevique parecia denotar apenas o aburguesamento do PT: que o partido resolvera enfim “entrar no jogo”, buscar o poder, pelos mesmos caminhos que as siglas tradicionais. Mas, no fundo, a modificação que os novos senhores traziam consigo era de natureza muito outra, bem mais sombria. Esse pessoal, ao desistir do ideal socialista, perdeu seu altar. Ficou por assim dizer “órfão de transcendência”. E esse vazio foi muito naturalmente preenchido pela idéia do poder pelo poder. Até aí, nada de novo. O problema é que ninguém chega de viagem sem trazer bagagem. Eles tampouco. E, fazendo a inspeção dos teréns, eles viram algo muito querido, que tinham impresso no coração e talvez fornecesse uma arma decisiva ao neo-PT: o “manual de instruções” leninista. E resolveram preservá-lo. E deixavam de ser marxistas nos ideais econômico-sociais, mas continuavam leninistas nos métodos políticos. No linguajar deles, mantinham intacto o “espírito revolucionário”. Ou seja, eram, agora, uns cristãos-novos da sindical-democracia. Prontos a recitar o Pai-Nosso, mas só até um certo trecho...
E o que prevê o “livrinho” é um jogo muito, mas muito bruto. Jogo que está para o praticado nas democracias ocidentais, assim como o vale-tudo está para o judô. E a diferença reflete o fato de que os bolcheviques originais não nutriam a mínima simpatia pelo modelo democrático “burguês”, com o teatro congressual e a cláusula da alternância do poder. Para os democratas liberais, um dogma; um brinquedo de crianças para Lenine e seus duros camaradas. Nisso crentes velhos, que fizeram os novos senhores do PT? Calçaram luvas de veludo em mãos de ferro, adaptaram o livrinho no sentido de incorporar sem discussão, “nesta fase histórica”, os outros dogmas democrático-liberais (o da repartição do poder, o dos direitos e garantias individuais e o da representação popular), mantendo, porém, intacto o método de confronto. Método que parte da premissa de que os oponentes (inclusive os internos, os dissidentes, os “revisionistas”), impõe-se não apenas vencê-los no voto, mas eliminá-los sem mais. E que se resume numa palavra: violência pura e simples. Violência tanto para abrir caminho para o poder quanto, depois, para manter-se no poder. Lenine absolvia a si e aos seus, declamando, com característico entono hegeliano, que a violência “é a parteira da história”.
E a deusa da democracia ainda cobrou tributo à tal parteira... Em lugar da violência física (os massacres, os Gulags, os expurgos), os recém-chegados tiveram de resignar-se (embora nem sempre, como atesta o caso Celso Daniel) à violência moral, com coisas mais benignas como a cooptação e, se esta não funcionar, a desqualificação, a chantagem, a difamação, a desmoralização. E em situação de poder, o golpe adicional do esmagamento político: o fazer cair sobre o oponente todo o enorme peso do Estado, inclusive a propaganda e a perseguição. E, em íntima ligação com isso, uma absoluta sem-cerimônia no lidar com a res publica. Recursos, informações, serviços, tudo é normal desviar, manipular, vender, em benefício partidário e (não ensinava o mestre que a obrigação primeira é sobreviver?), se for o caso, também pessoal. O pensar leninista profundo a respeito caberia num cartaz de manifestante: abaixo os escrúpulos, essa coceira pequeno-burguesa! Viva às maracutaias da nossa turma!
É o jogo. E como ele se adapta bem a um partido de massas como o PT! Foi assim com os seus congêneres no mundo inteiro. Uns mais, outros menos atrozes, cada um, porém, rezando por um livrinho-irmão, filhos que são, todos eles, d’O Príncipe de Maquiavel. E a razão está em que os partidos do gênero, independentemente de ideologia ou ambiente de atuação, podem sempre contar com a “paixão/pulsão de obedecer” dos “militantes”. “Sempre às ordens!”, gritam eles, soldadinhos em ordem unida. E eles são tropa numerosa e ubíqua. E para eles não há serviço sujo. Há missões espinhosas...
Ah, precioso livrinho, adaptado, sua aplicação foi um sucesso, os eventos subsequentes comprovam. Com ele, o partido chegou ao poder, o programa econômico foi trocado e deu tudo certo. A resultante dessas trocas é que era estranha: o PT se transformara num híbrido (ou num monstro), com um programa social-democrata e um ânimo leninista. Não tinha importância. Programa se tornara coisa secundária, qualquer um servia, contanto que ajudasse na luta pelo poder, esta, sim, questão de vida ou morte.
Mas não ficou por aí. O sucesso, por artes da dialética, levou o feiticeiro neo-petista (é o meu pesadelo orwelliano) a ir dar noutra praia excitante, nos umbrais de uma nova utopia: a da ditadura perfeita. Um regime de cara democrática, com executivo e legislativo compostos por representantes escolhidos em eleições populares, as franquias democráticas aparentemente intactas, mas dominado por um partido que nunca perde uma eleição. Com a oposição para sempre débil e vacilante, no íntimo imbecilizada por um misto de admiração e terror, diante da onipotência dos eternos senhores do poder. Com o espaço das liberdades públicas (de opinião, de oposição...) erodido por novas leis e interpretações restritivas. E os controladores do Estado com a faca e o queijo, as mãos livres para os “pequenos” delitos contra os oponentes: as invasões de privacidade, o agente fiscal na porta, o boicote a seus contratos com órgãos públicos etc. Um regime democrático em tudo, exceto na alma. Ah, seria também o crime político perfeito, ao mesmo tempo crime e álibi!
Se essas cogitações fazem algum sentido, fica fácil descobrir o porquê do desconforto atual com a conduta petista. Carência de ética? Sim, a ética petista “encharcou-se” a ponto de, nos últimos tempos, eles fazerem tudo aquilo que haviam outrora amaldiçoado e andarem de braços dados com todas as “más companhias” de antigamente (e de sempre...). Mas, nesse particular, nossa história é tão rica, que já estamos de couro grosso! A carência aguda, que incomoda nos companheiros, é sobretudo de normas aceitáveis, “civilizadas” para orientar a luta pelo poder. De métodos limpos de lidar com os oponentes (e com os companheiros também). De “etiqueta”, para dar um nome a essa rosa.
A etiqueta democrática parte da premissa da alternância do poder como um “valor”, um fim em si. Daí que, bem de acordo, aliás, com o sentido mundano da palavra, cada norma sua encerre, como um secreto perfume, um conteúdo de “delicadeza” e elegância. É que por detrás da regra está a atitude prévia frente ao oponente: o interesse em preservá-lo como contraparte essencial do jogo do poder. O oponente é o outro time! E o outro time, um outro modo de ver e agir que precisa existir e exprimir-se politicamente. E por que precisa? Porque (e, aqui, uma feliz descoberta “metapolítica” das modernas sociedades democráticas, que todos, até seus os políticos, aprenderam a reverenciar), a “verdade” não está nem com o time A nem com o B. Cada um vem com seu ativo e seu passivo. A “verdade” está é em a sociedade mudar periodicamente de um para outro... E a mudança é necessária como neutralizante para os “efeitos tóxicos” típicos do modo de agir de cada um, que o tempo vai acentuando. É algo assim como mexer-se a gente ao dormir... Importa, sim, que seja um movimento “por instinto”, por necessidade sentida pelo corpo social. E não viciado pela ação dos agentes políticos: pela propaganda ou pelo jogo sujo.
Com os leninistas, não. Eles não querem alternância e sua etiqueta é a que eu já descrevi. A diferença de etiquetas cria, então, a situação que os fatos listados acima documentam: enquanto a oposição democrática insiste no judô (e exagera na delicadeza...), o PT, infectado pela atitude leninista de desapreço absoluto aos antagonistas, vistos como inimigos a eliminar, responde com golpes de vale-tudo. Tudo vale, menos perder. E assim é que nasce o predador, o tyranosaurus político.
Agora, mesmo, o partido traz para a eleição presidencial o inconfessado (e evidente) desejo de estraçalhar politicamente o PSDB, seu principal antagonista, infligindo-lhe uma derrota eleitoral feia, acachapante. E de eleger um Congresso submisso, capaz de aprovar qualquer coisa sem fazer barulho. Para isso, e não só como sucedâneo do mensalão, formou esta aliança escandalosa, que congrega não apenas os aliados naturais, mas também outros agrupamentos de quem os petistas tradicionalmente eram os adversários mais ferrenhos (a “vanguarda do atraso” quase em peso). E joga todo o poder do governo a favor de sua candidata presidencial, com o próprio presidente tendo adotado um comportamento mais parecido com o de chefe de torcida do que de Estado, ao cometer, com ar de deboche, uma série gritante de infrações à legislação eleitoral. Ao “jurar” Artur Virgílio e outros opositores “incômodos”. Ao descer de seu cargo para fazer pela TV insultos pessoais ao adversário de sua candidata etc. No fim (é o que eles querem), Serra perde de muito, aniquilado pela força brutal do dinheiro e da falta de escrúpulos. E não só Serra, também os candidatos tucanos aos governos estaduais e ao senado. E todos, inclusive os simpatizantes tucanos, botam a culpa nos idiotas dos candidatos, dos marqueteiros, do partido... É a desmoralização pretendida.
O mais de lamentar é o fato de ser o PSDB o protagonista do mais notável episódio modernizador da história brasileira recente, de tantos e tão bons frutos. E o principal veículo de expressão política das camadas mais arejadas de nossa sociedade. Aquelas, em particular, que mais vocação, mais “embocadura” têm demonstrado para uma tarefa crucial, que é pensar o nosso futuro: detectar tendências, sondar o horizonte de problemas e oportunidades, atualizar temários, botar as cartas do moderno na mesa. Não é de tirar o sono que um tal assassinato se tenha maquinado e esteja em curso?
Para ser sincero, o PT tira o sono, e não é de hoje. Com uma diferença: antigamente, era sobretudo por questões de programa, e se desconfiava que eles fariam bem menos; agora, é sobretudo por questões de comportamento, e, visto o já feito, pode-se ter certeza de que eles farão muito mais...
2. A maldição de Macondo
Antigos tratadistas de Ciência Política, como Maurice Duverger, davam grande importância analítica à dicotomia entre partidos de massas e o que chamaram de partidos de quadros. Ah, velhos mestres, a história embaralhou vossa lição. A experiência do último século ensinou que, no poder, os partidos de massas tendiam a se transformar num tipo singular de partidos de “quadros”. Em quadrilhas que tomam o controle de cada célula do Estado e, além de passar a nutrir-se delas, põem-nas a serviço de seus objetivos sectários. Nos casos mais extremos, só foi possível desalojá-las depois de muito tempo e à custa do sacrifício de milhões de vidas.
Outra peculiaridade dos partidos de massas é sua tendência a se transformarem em instrumento do poder pessoal, nas mãos de um autocrata. Foi assim também no mundo inteiro... E disso sabe bem o feiticeiro de meus pesadelos. O que ele não perderia em saber é que há muita coisa além do que imagina sua vã feitiçaria. Em Latinoamerica, diz o cordel, tudo finda em latifúndio, em mãos de algum coronel. A sombra de Perón estacionou sobre o céu da Argentina desde os anos 40. Os irmãos Castro conquistaram Cuba nos anos 50, e de lá não saem, nem ninguém os tira. Chávez já mandou cortar o pijama para morrer na cama do poder. Cada país parece buscar seu Buendía. E o nosso bojudo e abençoado Brasil? Não sei. Só sei de algumas coisas: que poder de coronel é planta que brota em sua fazenda. E coronel governa com outros coronéis, compadres num grande condomínio. E nutre um fraco por afilhados e Zecas Diabos. E em dois pontos ele e o feiticeiro coincidem: na busca do poder pelo poder e na ojeriza ao moderno. O tecno lhes é fatal. Enfim, coronel que é coronel morre na cama. E coronel é bicho ardido, urde cada estratagema...
Sei também que Lula é um incompreendido. Ele usa a toda hora a santa palavra “companheiro”, mas as pessoas se enganam: companheirismo é pouco para sua grande alma cordial. Sua paixão dominante, seu sentimento congenial é o compadrismo espaçoso e confortável! O compadrio político, em conjunção carnal com o poder, engendra, sou forçado a reconhecer, um macro-cartel de produzir e distribuir privilégios. Sim, mas também um doce e atlântico lidar com gente-do-peito, que fornece o álibi para quaisquer demasias. A desculpa perfeita para a união geral do público e do privado, os gados e as fazendas...
Lula, ao se “misturar”, vendeu a alma, dirão os incompreensivos. Vendeu nada! Só se foi a postiça. A verdadeira, a autêntica é essa alma de compadre latino-americano com que ele enfim se descobriu ao cabo de sua longa e heróica circunavegação de si mesmo. Essa com que, no alpendre, ele recebe Sarney, Collor, Jader, Renan, Jucá e o mais da fina flor. Os companheiros maranhenses entram em greve de fome, querendo se finar de puro desgosto. Mas Lula e Sarney não cabem em si de contentamento. Era fatal terminarem um dia um nos braços do outro. São dois compadres de romance de Gabriel Garcia Márquez, basta reparar naquela voz de minotauro. Ou no retalho de plantation centro-americana que é aquele vasto bigode vicejante...
Mas, replicarão, não se detecta em Lula, embora compadre, a vocação coronelesca. Ora se não! Se até modelito com brasão da república no peito ele botou... Pois não foi ele quem cancelou a utopia e transformou em fazenda o seu PT, quando lhe empurrou goela abaixo, como candidata presidencial, uma afilhada novata no partido, burocrata de gênio difícil e sem qualquer experiência política? Que eleição, jamais disputara uma, sequer para síndica de condomínio? Que, ainda ontem, na hora antecedente à epifania lulista, saía sozinha pela rua, ilustre e desconhecida dama? E cuja virtude é de afilhada: a certeza que dá ao padrinho de que, presidenta, lhe tomará a bênção todo dia, ao nascer e ao pôr-do-sol; e a promessa que faz de devolver-lhe a faixa presidencial à primeira badalada de 2015?
Foi seu Rubicão. Dobrado o PT, era a vez de Lula impor a afilhada ao país, escarnecendo publicamente da lei e da liturgia do cargo, que lhe vedavam ações eleitorais antecipadas. Deu certo (com ele, até aqui, sempre compensou...) e o presidente apareceu de sorriso novo. E me deixou de orelha em pé: pode até ser prevenção, mas eu não consigo mais vê-lo na TV sem achar que ele está botando na Mãe-pátria uns olhares de César hirsuto...
Mas Lula, alegam, com suas alianças compadrescas enfraqueceu o PT e, em última análise, saiu enfraquecido. Saiu nada! O PT, sim, sai com outra cara (a terceira, a quarta?), e, em lugar de candidato a arremedo de partido único, fica mais para, digamos, um primus inter pares. Ou, em nu e cru, para um partido de mordida mais feroz, armado de caninos leninistas. O trunfo de Lula na aliança, no novo Centrão que ele formou com os compadres-coronéis. Não menos, nem mais. Mas ele, agora, já não conta só com a militância petista: torna-se também desde logo o generalíssimo do grande exército de cabos eleitorais dos grotões deste país. Além de mais econômico, mais seguro, calcula: com o PT, ele se protege dos coronéis; e com os coronéis, do PT.
Daí porque, eu digo, ninguém se iluda (nem brinque com fogo e erre nos cálculos algum jovem gênio político oposicionista, pois isso lhe e nos será fatal): ganhando Dilma, depois não vem a oposição. Ou vinga o projeto de meus “bolcheviques” e eles, por quatro gerações, vão nos dar a sua “paz democrático-popular”; ou volta Lula, e corremos o risco de ver cair sobre o Brasil uma maldição. O coronel morrendo de velho em seus aposentos palaciegos, cercado de compadres e afilhados. O povão, como antes, distraído no bananal, tratado a Bolsa Família e doses maciças de propaganda. E os demais? Os demais, (os “anti”, os “contras”) abreviando as vidas, feito uns Sem-Amanhã, em “austera, apagada e vil tristeza”. Como em Macondo... E pensar que, trinta ou quarenta anos atrás, na escuridão do autoritarismo, a esperança deu canto e agasalho para tantos de minha geração (ah, antigos rapazes e moças latino-americanos sem dinheiro no banco...).
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