Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura
Globo On Line - 1/6/2014
João Ubaldo Ribeiro
Não sei se vocês lembram, ou que fim levou, aquela história
de censurarem, expurgarem ou proibirem um livro infantil de Monteiro Lobato,
por aspectos considerados racistas. De vez em quando, fico um pouco impaciente
e pergunto por que não proíbem logo “Os Sertões”, com tanto racismo contido na
parte que todo mundo diz que leu, mas não leu, a referente ao homem. Deve ser
porque de fato não leram, senão a grita ia poder começar até mesmo por
Itaparica, onde somos todos, de acordo com a visão dele, mestiços neurastênicos
do litoral. A antropologia da época tinha convicções que podem hoje ser
qualificadas de racistas, mas era a ciência de então e no mesmo barco estão
outros cuja obra haverá de merecer ser reescrita ou banida, como Oliveira
Vianna ou Sílvio Romero. Imagino que devemos até nos surpreender por ainda não
terem começado uma reavaliação da figura de Machado de Assis, sob a acusação de
ele ter sido um mulato alienado metido a branco, ou uma condenação da crítica,
por não o haver qualificado de maior escritor negro do Brasil.
Mas, no caso de Machado, dizem as novidades, não se trata de
racismo, trata-se da elaboração, com a chancela e o apoio do Estado, de versões
populares, ou acessíveis à maioria, de obras dele. Segundo o que saiu nos
jornais, concluíram que os jovens e pessoas menos cultas não leem Machado
porque não entendem as palavras e não percebem o que querem dizer certos
arranjos sintáticos. Ou seja, o problema é com Machado, cujos textos obsoletos
são preservados supersticiosamente e já não têm serventia para as gerações
presentes. Urge, portanto, que nos livremos dessa tralha inútil e elitista,
corrigindo o muito que clama por atualização.
A observação inicial que se pode fazer sobre tal premissa é
que ela se fundamenta na crença, comum entre pessoas semiletradas e analfabetos
funcionais, de que, na obra literária, existe uma diferença, ou separação,
entre forma e conteúdo. O conteúdo seria a “história”, o “enredo”. A forma
seriam as palavras usadas pelo escritor e seu jeito de narrar. O que interessa
aos que reescrevem Machado é esse “conteúdo”, que pode ser contado de diversas
maneiras. Assim, “Dom Casmurro” seria basicamente o mesmo, quer tendo sido
escrito por Machado, quer por Dostoiévski, Balzac ou Jorge Amado. Isto,
realmente, é de uma estupidez inexcedível e contribui para que ganhe corpo a
noção primária de que é possível conhecer a literatura de um país, simplesmente
ouvindo, da boca dos que já as leram, as histórias contadas pelos grandes
escritores, não vindo ao caso suas palavras, seu estilo, suas sutilezas, suas
referências.
É curioso como iniciativas desse tipo se veem como
antielitistas. As elites, o que lá seja isso por aqui, querem preservar para si
mesmas a fruição da grande arte. Só quem tem vocabulário e fez esforços para
ser um bom leitor é que pode desfrutar de Machado de Assis? Não, senhor, agora
qualquer um, mesmo com vocabulário restrito e praticamente inculto em todas as
áreas, vai poder ter esse privilégio. Para isso, vamos rebaixar, vamos reduzir
os textos a uma voz tatibitate, modernosa e linguisticamente irresponsável,
vamos limitar o vocabulário e tomar outras medidas simplificadoras. Não se nota
como essa posição — ela, sim — é presunçosa, arrogante e elitista. Não se pensa
em estender a todos o que hoje é visto como das elites, pensa-se em baixar o
nível e assim ser democrático, quando o que ocorre é o contrário.
Os laços lógicos desse paternalismo condescendente desafiam
a imaginação e, num contexto em que cada vez mais o Estado (ou seja, no nosso
caso, o governo) mete o bedelho na vida individual de seus súditos, podemos
temer qualquer coisa. Quanto a Machado de Assis, não se pode fazer mais nada,
além de reescrever seus textos. Mas, quanto aos autores vivos, pode-se
incentivá-los (ou obrigá-los, conforme o momento) a ater seus escritos ao
Vocabulário Popular Brasileiro, que um dia destes pipoca por aí, tem muita
gente no governo sem ter o que fazer. Constará ele das 1.200 palavras
compreensíveis pela melhor parte da juventude e do povo brasileiros e, para não
ser elitista, quem publicar livro ou matéria de jornal não deve passar delas e
quem usar uma palavra considerada difícil não apenas será sempre vaiado quando
em público, como pagará uma multa por vocábulo metido a sebo.
Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa
hercúlea de atualizar nossa literatura. Para que os poetas precisam de tantas
palavras, quando as do Vocabulário seriam suficientes para exprimir qualquer
sentimento ou percepção? Ou o elitista diria o contrário, menosprezando
preconceituosamente a sensibilidade e a criatividade do povão? E rima, meu Deus
do céu, para que se usou tanto rima, uma coisa hoje em dia completamente
superada? E ordens inversas, palavras postas fora do lugar, que só podem
confundir o leitor comum? Por essas e outras é que os jovens também não leem
poesia.
E a lição se estende da literatura às outras artes. O povo
não gosta de música erudita porque são aquelas peças vagarosas e demoradas
demais. De novo, a solução virá ao adaptarmos Bach a ritmos funk, fazermos
arranjos de sinfonias de Beethoven em compasso de pagode e trechos de no máximo
cinco minutos cada e organizarmos uma coleção axé das obras de Villa-Lobos.
Tudo para distribuição gratuita, como acontecerá com os livros de Machado
reescritos, pois continuamos a ser um dos poucos povos do mundo que acreditam
na existência de alguma coisa gratuita. E talvez o único em que o governo
chancela, com dinheiro do cidadão, o aviltamento de marcos essenciais ao
autorrespeito cultural e à identidade da nação, ao tempo em que incentiva o
empobrecimento da língua e a manutenção do atraso e do privilégio.
João Ubaldo Ribeiro é escritor
Comentários