‘Os ex-censurados que agora querem censurar’, de José Nêumanne
23/10/2013
às 16:16 \ Feira Livre
Publicado no Estadão desta
quarta-feira
JOSÉ NÊUMANNE
“As aparências enganam aos que
odeiam e aos que amam.” O verso de Sérgio Natureza, musicado por Tunai, fez
sucesso na voz de Elis Regina, reconhecida como a maior cantora brasileira de
todos os tempos, mas, ainda assim, controvertida. Agora a frase virou uma profecia
confirmada. A personalidade da estrela era tão forte e polêmica que quando se
casou com Ronaldo Bôscoli o irreverente Carlos Imperial ironizou: “Bem feito
pros dois”. Desse casamento nasceu João Marcello, que adotou uma posição
definida e lúcida contra a censura prévia que ídolos da Música Popular
Brasileira (MPB) querem impor ao submeterem as próprias biografias ao crivo
deles. Como os irmãos Maria Rita e Pedro, João Marcello jamais criou obstáculos
à publicação de biografias da mãe por saber que fazê-lo seria trair sua melhor
herança: o amor à liberdade.
Já Chico Buarque de Holanda é uma
unanimidade nacional, como definiu Millôr Fernandes. Mas o símbolo da luta
contra a censura na ditadura militar aderiu ao movimento Procure Saber, que
luta para manter o dispositivo adicionado ao Código Civil em 2002 que submete
biografias à prévia autorização de biografados ou herdeiros. Em artigo no Globo,
ele acusou o autor da biografia de Roberto Carlos, proibida a pedido deste,
Paulo César de Araújo, de ter usado depoimento que ele não teria dado sobre o
biografado. Depois da divulgação da conversa dos dois na internet,
desculpou-se, mas voltou a mentir, ao inventar que o Última Hora
paulista prestara serviços a “esquadrões da morte”. Tal mancha na história do
jornal é tão fictícia quanto o Pedro Pedreiro da canção do acusador. Nos anos
70, o diário teve entre seus colunistas o mais censurado dramaturgo do Brasil à
época, Plínio Marcos, e chegou a ser dirigido por seu fundador, Samuel Wainer.
E o filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil,
como lembrou a irmã Ana, ainda cuspiu na memória do pai.
Provado que as aparências
enganam, convém acrescentar que ninguém deve julgar por elas. Por exemplo, o
movimento liderado por Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso, não deveria
chamar-se Procure Saber, mas, sim, Não queira nem saber. E ao contrário do que
asseguram seus protagonistas – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Marília
Pêra e outros – não luta por uma garantia legal, já assegurada em nosso Estado
Democrático de Direito a qualquer cidadão: o direito à privacidade. Mas por um
privilégio a ser gozado apenas pelas celebridades: o direito de furar a longa
fila de quem recorre à nossa Justiça, que não é cega, mas de uma morosidade que
beira a paralisia.
A manutenção do artigo que
submete a publicação de biografias à autorização de biografados ou seus
herdeiros viola o princípio democrático basilar do direito à liberdade de
informação, expressão e opinião. E sua extinção não interferirá na legislação
que já protege a reputação dos cidadãos e estabelece penas e multas a quem
divulgue mentiras, calúnias, injúrias ou difamações contra alguém. A supressão
do artigo que destoa das instituições democráticas vigentes, pois, não porá em
risco a reputação de ninguém. Apenas negará aos famosos o privilégio de
proibirem a publicação de livros sobre sua vida que registrem alguma informação
que não queiram que seja divulgada.
O patrono dos “neocensores”,
Roberto Carlos, quer manter em segredo o acidente ferroviário que lhe decepou a
perna, bastante conhecido, como antes proibiu regravações de Quero que Vá
Tudo pro Inferno. Mas nem o espírito de censor, adicionado às manias de seu
transtorno obsessivo compulsivo (TOC), como o de não cumprimentar quem vista
roupa marrom, explica o fato de ele ter vetado a publicação de tese sobre a
moda na Jovem Guarda, que considera parte de seu patrimônio pessoal.
A fortuna de Roberto e Erasmo
Carlos foi construída mercê da fama obtida pela imensa receptividade do público
pagante a sua obra musical. Nada mais justo! Só que celebridade exige a
contrapartida da curiosidade da plateia, assim como a vida pública dos
dirigentes da República cerceia algumas comodidades de que os cidadãos anônimos
gozam. A vida dessa elite faz parte da história da sociedade. O melhor que
alguém que não queira submeter-se a esse incômodo pode fazer é recolher-se ao
anonimato, trancando-se a sete chaves. Isso não quer dizer que algum biógrafo
irresponsável possa mentir sobre qualquer episódio da vida de uma pessoa só
porque ela é muito conhecida.
É natural, mas não é correto, que
quem desperta interesse tente resguardar-se, como alguns venerados artistas
reivindicam, ou exigir licença para delinquir, com a qual sonham alguns maus
políticos. A condenação dos mensaleiros pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
puniu a corrupção e deixou claro para esses mandatários que eles têm, como um
cidadão comum, a obrigação de cumprir as leis que debatem e aprovam. O mesmo
princípio da igualdade de todos perante a lei é ferido pelo pleito do grupo de
famosos que querem censurar previamente suas biografias.
Os votos de seis ministros do STF
aceitando embargos infringentes de alguns réus do mensalão põem em debate outro
obstáculo à isonomia: o limitado acesso à Justiça, em geral, e ao Supremo, em
particular. Os ex-censurados que viraram censores prévios pretendem o mesmo que
José Genoino e José Dirceu reivindicam: a garantia de um privilégio hediondo
como prêmio a suas biografias de respeito. Não foi à toa que Antônio Carlos de
Almeida Castro, o Kakay, advogado de alguns mensaleiros, publicou artigo em
defesa dos ídolos da MPB. Mas estes deveriam era seguir o sensato exemplo de
João Marcello Bôscoli: ao se pretenderem censores prévios da publicação de suas
biografias, terminam manchando-as de forma indelével.
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