Carlos Nina*
Em
julho deste ano escrevi e publiquei, sob o título “Método Ludovico para os
condenados da Lagoa”, artigo no qual fiz uma comparação entre o famoso método
criado por Anthony Burgess em seu livro Laranja
mecânica (1962) e a tortura que rotineiramente é imposta, oficial, oficiosa
e impunemente, contra os moradores da Lagoa da Jansen, em São Luís.
A
tortura recomeçou com a divulgação e a armação da parafernália que vai, mais
uma vez, atormentar os residentes daquela área neste final de semana.
Como
disse naquele artigo (disponível no site www.consensual.com.br),
a Lagoa da Jansen, área de lazer construída pela Governadora Roseana Sarney
para desfrute prazeroso dos que a usam para passear, caminhar, correr, andar de
bicicleta, levar crianças para brincar, foi transformada num verdadeiro castigo
para os moradores da região, condenados sem direito à defesa e sem ninguém a
socorrê-los.
São
pessoas simples, estudantes e trabalhadores que precisam acordar cedo para
cumprir suas responsabilidades; bebês, crianças, idosos e pessoas enfermas que
precisam de sossego; famílias que gostariam de desfrutar noites e
fins-de-semana tranquilos no aconchego de seus lares, mas que foram condenadas
a conviver com o barulho ensurdecedor de shows, transmitidos por alto-falantes
potentes para serem ouvidos o mais alto e longe possível, alcançando todos os
condenados do local.
Os bons prazeres domésticos também foram proibidos com a
tortura imposta aos condenados da Lagoa, que ficam impedidos de ouvir boa
música, fazer uma leitura qualquer ou reunir amigos em sua
residência para uma conversa descontraída.
Os que se beneficiam dessa exploração abusiva, que só
usam a Lagoa para estimular o uso indevido daquela área pública só sentirão os
efeitos dessa tortura se dependerem de alguém, um médico, por
exemplo, que precisar de uma boa noite de sono para, pela manhã, manter os
olhos abertos, mas tal não conseguir porque passou
a noite sob tortura sonora e amanheceu com o barulho dentro do cérebro,
escorrendo pelos ouvidos e poros longamente intoxicados por excesso de
decibéis.
O
desvirtuamento da finalidade da área da Lagoa já é fato consumado. Ali estão
reiterada, emblemática e acintosamente expressas variadas e impunes violações
às normas de proteção ao meio ambiente, de poluição sonora, de respeito à
dignidade da pessoa humana, à paz e a segurança pública. E não adianta recorrer
a ninguém. Se pedido de providência e denúncia resolvesse o problema, há muito
a paz e o respeito já teriam sido ali restabelecidos.
Mas
só os condenados da Lagoa sabem o quanto constrange e dói esse castigo. Além do
estresse causado pela tortura que é não deixar a pessoa dormir, quer seja bebê,
criança, jovem, adulto ou idoso, há o agravamento da indignação pelo abuso,
pela impunidade, pela afronta, pelo desrespeito, com a absoluta omissão e
conivência das autoridades que deveriam coibir, reprimir e punir essas
violações.
Apesar
da angústia que a notícia causa, da surdez que o barulho produz e da revolta
pela impotência diante do abuso, tento refletir sobre os danos que são causados
ao fetos das grávidas sujeitas a essa situação; os reflexos no humor e na
disposição de profissionais da saúde, que precisam levantar cedo e estar
descansados para fazer cirurgias; ou de professores que devem transmitir
valores de cidadania a seus alunos; o temor dos residentes com a segurança no
retorno de suas longas jornadas de trabalho; ou o desassossego de simples
aposentados que gostariam de ter justas e merecidas boas noites de sono.
Para
agravar a situação, até a opção dos moradores de mudar da área foi prejudicada,
porque casas e apartamentos do local ficaram desvalorizados. A Lagoa, que seria
um fator de valorização urbana, inclusive por dispor de concha acústica com
área para shows públicos e gratuitos, no porte apropriado para a preservação do
ambiente e respeitar o direito dos ali residentes, tem contribuído para
desvalorizar os imóveis da região. Afinal, quem quer, conscientemente, adquirir
um imóvel numa área onde são realizados com frequência shows com equipamentos
de som ensurdecedores? Quem quer morar numa área onde, constantemente, as ruas
são entulhadas de veículos e não raro até as entradas das garagens são
obstruídas porque aquele local não foi projetado para esse tipo de evento? Quem
quer morar num bairro onde os riscos de violência se agravam por conta da
baderna que se sucede a partir desses abusos, atravessando a madrugada? Quem
quer morar numa área onde o Poder Público, por omissão ou aprovação, trabalha
contra seus moradores?
Os
residentes do local, apesar de indignados, não reagem coletivamente. Esperam de
órgãos públicos omissos que cumpram sua finalidade. Desencantados, resignados,
impotentes, sabem que por trás desses eventos está o próprio (abuso do) Poder.
Por isso não reagem a essa omissão, fermentada pela simbiose de Poder
intimidando e corrompendo Poder. Fazer o quê?
Se
boa parte dos condenados da Lagoa conhecer a luta que Lino Moreira travou e
trava contra abuso semelhante que atazanava a vida de quem mora na Península da
Ponta d’Areia, também na Ilha do Amor (agora, do Barulho), pode estimular-se
para, também, reagir, em defesa de seus direitos. Ele não desistiu um minuto
sequer, nem foi tentado a isso pelas advertências de que não adiantaria lutar,
pelo desinteresse de algumas das autoridades às quais recorreu e, também, por
e-mails ameaçadores. Seguiu a velha máxima de Rudolf von Hiering, para quem o
direito não assiste aos que dormem. No caso da Lagoa, nem aos que ficam
acordados contra a própria vontade.
Alguns
acreditam que é a sina da Ilha. Baseiam-se na história de uma grande serpente
que cresce ao redor de São Luís, e que, quando a cabeça encontrar a cauda,
afundará a Ilha. Mas isso é lenda, inspiração vazada na obra de Josué Montello
e na música de Cesar Teixeira, dentre outros. Mas a Serpente da Lagoa da Jansen
está lá, real, com a cabeça e parte do corpo à mostra. Tem até seus pontos de
observação, que às vezes disfarça com folhagens, como provam as fotos que
ilustram este texto. É a essa cobra que outros atribuem o sofrimento a que
foram condenados os moradores da Lagoa da Jansen, em São Luís. Talvez até seja
a essa cobra que Zeca Baleiro se refira quando diz em seus versos que quer ver
a serpente acordar “pra nunca mais a cidade dormir”. A cidade dorme. Só quem
não dorme é quem mora na Lagoa ou em outros lugares da cidade onde esse mesmo
desrespeito, essa mesma omissão e conivência ocorre.
A
julgar pela maneira como andam as coisas, é melhor acreditar na lenda, pois,
quem sabe, se a Ilha afundar para recomeçar, as pessoas aprendam a respeitar
seus semelhantes. Quem sabe, também, assim, particulares deixem de enriquecer
ilegitimamente em detrimento da comunidade e do bem comum.
* Advogado e jornalista.
A área privatizada e os apartamentos privilegiados pela proximidade do local de emissão dos decibéis |
Área privatizada e, à direita, a inútil concha acústica |
A Serpente da Lagoa vista do outro lado |
A Serpente da Lagoa aproximando-se de seus Buracos de Observação |
A Serpente da Lagoa seguindo na direção de seus Buracos de Observação |
A Serpente da Lagoa passando atrás da placa da Lagoa |
Buraco de Observação P 1 da Serpente |
Buraco de Observação P 2 da Serpente, com direito a saudável aroma de esgoto |
Close do Buraco de Observação P 2 da Serpente, onde ela palitava os dentes |
Disfarce da Serpente da Lagoa para ver o carnaval do Buraco de Observação P 2 |
Outro ângulo do disfarce usado pela Serpente no carnaval |
Buraco de Observação P 2 da Serpente da Lagoa, onde a dita continua palitando os dentes |
Close do eficiente órgão estatal de proteção ambiental |
Close do órgão estatal de proteção ambiental e, ao fundo, a área privatizada objeto da proteção estatal |
Placa comprobatória da eficiência do órgão estatal de proteção ambiental |
Residências, à esquerda, e órgão estatal de proteção ambiental à direita |
Comentários