Em presença da morte

Jornal O Estado do Maranhão


          Valores morais de grupos, regiões e culturas particulares devem, quando em confronto com seus equivalentes morais de caráter universal, dar a estes, em que figura o direito à vida, preferência. As sociedades civilizadas, aquelas de há muito livres da lei da selva e da luta de todos contra todos, vivem sob o império de regras de convivência consubstanciadas em leis e normas. Seus membros respeitam aquelas referências universais. Claro, há situações, como as de guerra, em que matar o adversário, na ausência de outra opção, como prendê-lo, é a única saída em favor da própria vida.
          Se eu perguntar aos meus hipotéticos leitores se eles são a favor do infanticídio, eles poderão até se ofender tal o absurdo de responder positivamente a pergunta como essa. Eles bem sabem a resposta que lhes não repugna o senso moral: – Não, não sou a favor.
          Eles talvez não saibam, porém, nestes tempos de ditadura do politicamente correto e do relativismo cultural, caracterizado pelo errado ser o certo e o certo, errado (é isso mesmo, existe, sim, o certo e o errado, apesar dos antropólogos de asfalto, sociólogos de abaixo-assinados na internet, filósofos ligeiramente chiques e outros mais), os leitores, podem não saber, eu dizia, da existência de uma lei punitiva de funcionários públicos que se recusem a compactuar com o assassinato de infantes indígenas.
          Explico com informações colhidas no blog de Reinaldo Azevedo. Os ianomâmis e outras etnias praticam o infanticídio quando: os recém-nascidos dão o azar de trazer alguma deficiência física; nascem gêmeos ou trigêmeos – nesse caso só um escapa da degola; são filhos de mãe solteira e por aí vai. Em época pré-feliciana, referente ao deputado Feliciano, a Geni do momento do politicamente correto, um deputado do PV apresentou em 2007 projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara que punia funcionários públicos omissos em relação à prática. Não conseguiu emplacar a sensata ideia. Era preconceito conservador.
          Em oposição à iniciativa, a deputada Janete Pietá, do PT de São Paulo, levou à mesma Comissão, em 2011, projeto de lei prevendo penalidades a quem, vejam bem, não se omitisse. A omissão passou a ser obrigação. Isso mesmo, leitor, você leu corretamente, penalizado seria quem ousasse agir para salvar da morte crianças indígenas. Tal aberração seria justificada pela necessidade de não interferência na “cultura deles”, de tal modo a garantir sua preservação e, assim, uma pureza utópica que nem mesmo os índios desejam.
          Entre outras maravilhas, a deputada disse que “apenas 10%” das tribos sacrificam suas crianças sem sorte. Nojento. Se for para matar poucas, os adultos estão livres para fazê-lo? E se a percentagem fosse de 50% por cento, ainda poderiam ser massacradas ou o limite é 49%? É de embrulhar o estômago, pelo menos o meu, que nem sequer tem, como tem o da deputada do PT, o monopólio da sensibilidade social. O projeto não teve dificuldade de aprovação e foi transformado depois em lei. É sob a influência de pensamento como esse, hoje dominante nas universidades, em boa parte da imprensa e em gente influente no governo, que vivemos.
          Vamos imaginar o seguinte. Um ex-funcionário da FUNAI, ex precisamente porque acreditou que deveria salvar crianças índias, volta ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, em busca de emprego. Numa “comunidade” – essa a palavra politicamente correta para favela –, vê uma tentativa a poucos metros dele, de assassinato de uma criança de três ou quatro anos. Gato escaldado, cruza os braços. Uma câmara de vigilância grava a cena e ele é acusado de omissão de socorro. Qual a lei válida, a da selva, feita a fim de “defender a cultura deles” (dos ianomâmis) ou a da cidade?
        E se fosse da tradição matar as pessoas de outras tribos pelo única razão de serem diferentes dos agressores? Para não interferir na sua cultura, deveríamos condescender com o extermínio mútuo? E se “comunidades” do Rio agissem da mesma forma? A polícia deveria permanecer inerte em presença da morte? Ou chorar, como o índio guerreiro do poema?

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