Assassinatos em massa
Jornal O Estado do Maranhão
As mortes de centenas de jovens em Santa Maria não resultaram de fatalidade nenhuma, ao contrário da cínica afirmativa de um dos proprietários da casa noturna Kiss, depois de tentar colocar a culpa pelo desastre nas pessoas que, tendo escapado em desespero da arapuca de gazes mortais, teriam obstruído a passagem de quem vinha atrás. Ele também mandou divulgar a notícia falsa de que teria tentado se suicidar. Os assassinatos foram o ponto final de corrente feita com elos de irresponsabilidade, insensatez, ganância, ilegalidade, incompetência, imperícia, inconsequência, dolo, fraude, deboche, desídia, escárnio e, por último, mas não menos importante, corrupção e corrupção de novo.
Tudo isso mata, é arma de assassinatos em massa. Algumas vezes morre muita gente de uma só vez, como atualmente. Outras, aos poucos. Uma pessoa hoje, outra amanhã... Se houver uma morte, tão somente, a cada dia no Brasil, com origem nessas causas ou em um subconjunto delas ou em todas em conjunto, serão, em um ano, 365 mortos, mais do que os da câmara de gás de Santa Maria. Ninguém será apontado como criminoso, porque não haverá o mesmo impacto de agora e a responsabilidade será diluída. A saída? Manter fiscalização permanente, rotineira, honesta, sem jeitinhos e subornos. Qual a serventia de expedir licenças se as exigências nelas contidas nunca são verificadas?
Há fraude até no nome do estabelecimento, Kiss, Beijo em inglês. Ele deveria se chamar Death Kiss, Beijo da Morte. Ora, mentira no nome, mentira em tudo. E no entanto, bastaria às autoridades cumprirem os deveres do seu ofício a fim de evitar chacinas como essa. Por que não o fizeram? Por que não o farão, passada a comoção do momento?
Ninguém deve se iludir. Estamos a duas semanas dos fatos e já começa a diminuir a pressão por medidas de prevenção e de prisão dos culpados, inclusive e principalmente de agentes públicos corruptos. Só os mensaleiros devem conhecer as infectas penitenciárias brasileiras? Também aqueles na cadeia, sejamos democráticos. A indignação desaparecerá num piscar de olhos e ficarão apenas a dor e a revolta sem voz das famílias das vítimas e dos cidadãos, com a corrupção oficial.
Volto à pergunta acima: Qual o motivo da falta de fiscalização? Vivemos no país do jeitinho, do “agrado” para a cervejinha, do desrespeito às leis, das tentativas de acordos que tentam colocar em pé de igualdade com os cidadãos de bem bandidos; no país do não pode, mas, quem sabe, pode; da propina; da cumplicidade com a irregularidade de parte de agentes públicos que têm a obrigação de manter vigilância e ser rigorosos, porém fingem ser tolerantes e razoáveis. Não passam de promotores do rebaixamento do ordenamento legal. A coisa vai de cima a baixo, em todos os andares, dos gabinetes ao subsolo. Vivemos numa sociedade em que clamar pela legalidade transforma quem clama em um dom quixote urbano ou em um simão bacamarte sem a Casa Verde de Itaguaí, e aplicar os rigores da lei é ser autoritário e radical.
Eu mesmo escrevi neste jornal um texto com o título: Cumpra-se a Lei. Referia-me à do silêncio e falava por uma comunidade de centenas de residentes composta de crianças que necessitam fazer seus deveres escolares, todavia impedidos pela poluição sonora, de idosos com a saúde debilitada e necessidade especiais, contudo insones nos fins de semana, de enfermos em situação de fragilidade, em cadeira de roda, não obstante sem esperança de sossego e assim por diante. Cientificadas do fato, as autoridades, com pouquíssimas exceções, se omitiram e se omitirão. Quase nenhuma, não obstante, se sente responsável por coisa alguma.
Não é a falta de leis que nos atrapalha, é o excesso. A teia opaca tecida com elas e a confusão assim gerada escondem os meliantes e os incentivam a prosseguir na carreira. Em ocasiões como a atual, quando a indignação é máxima, sempre aparece alguém propondo a criação de “legislação mais rigorosa”. Se a existente fosse aplicada (falo da esfera administrativa) quanto trabalho seria poupado ao Judiciário e quanto mais segura seria nossa vida!
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