Gonzagão
Jornal O Estado do Maranhão
A maior parte da infância e juventude, eu passei ouvindo as canções de Luís Gonzaga. O gosto eclético de meu pai, da mesma geração de Gonzagão, pois era apenas um ano mais velho do que ele, o misturava a óperas, operetas, sinfonias, samba, boleros e muito mais nas modernas radiolas de então, aparelhos destinados à reprodução sonora dos antigos LPs, abreviatura derivada do inglês Long Playing, expressão para significar a reprodução de música por longo tempo, com discos que rodavam 33 vezes por minuto, em contrate com os de 78 rotações, capazes de conter apenas duas canções, uma em cada face. Radiola, vamos lembrar, adquiriu no Maranhão significado diferente. Agora tem nome, vida própria e está associada ao reggae, ritmo com origem na Jamaica (mas quase tudo no Brasil tem origem na Europa ou na África), bem do gosto popular, fazendo jus às nossas raízes africanas.
Em incontáveis manhãs de domingo, acordávamos com meu pai ouvindo, e nós também, A Vida do Viajante, Asa Branca, Xote das Meninas, Paraíba, Assum Preto, Boiadeiro, Olha pro Céu, No meu Pé de Serra, Vem Morena, Que nem Jiló, A Triste Partida, Ovo de Codorna e tantas e tantas. O ritmo bem marcado do baião; as letras próximas da vida nordestina no campo e nas cidades, com menções às migrações em direção às grandes cidades, no início de um movimento somente completado lá pelos anos 80 ou 90; a seca; o sofrimento e a tristeza do povo; os amores e sonhos das moças naquele tempo chamadas de casamenteiras; as referências às noites de São João; a exaltação do próprio baião; tudo isso era expresso numa voz forte e inconfundível de um homem simpático, comunicativo inovador, que amava estar com o povo, tendo sido pioneiro entre os ídolos populares, na realização de turnês pelo Brasil. As recordações desse tempo tornaram-se inapagáveis em minhas lembranças dos anos 50.
Luís Gonzaga foi o responsável mais importante pela popularização do baião. A partir de sua forma original, por sua vez derivada da maneira como era tocado o lundu na zona rural do Nordeste, foi estilizado por ele e levado até as zonas urbanas do país. Seus acompanhantes nas apresentações adotavam formação que veio a se tornar clássica: sanfona, zabumba e triângulo. Andou por todo o Brasil e gabava-se de ter estado em todas as cidades brasileiras e feito apresentações na maioria delas, levando a música regional nordestina. Até hoje, foi o único ritmo autenticamente regional brasileiro a alcançar aceitação nacional.
Lembro de uma das vezes em que ele, em suas andanças, se apresentou em São Luís. Já capturado pela força de suas canções e sua voz poderosa, de timbre metálico, resolvi ir vê-lo de perto, a poucos metros de casa, se a memória não me induz a erro miseravelmente, como costuma fazer, na quadra do atual IFMA, no bairro do Monte Castelo, na época Escola Técnica Federal do Maranhão. Lá estava o homem com seu gibão e chapéu de coro, acompanhado pelo triângulo, a zabumba e a sanfona dos componentes de seu grupo. Vê-lo ali tão de perto foi experiência não menos cheia de emoções do que a de me ver, duas décadas e meia mais tarde, de repente, numa sala não maior do que 50 ou 60 metros quadrados, com outros doutorandos em economia da Universidade de Notre Dame, em Indiana, de me ver, eu dizia, a poucos metros de Joan Robinson, economista inglesa, vencedora do prêmio Nobel de economia e grande teórica da economia da competição imperfeita. Ela estava lá, à nossa disposição para uma conversa, pronta a responder as perguntas que teimosamente não quiseram sair de minha garganta.
As andanças de Gonzagão o distanciaram do filho Gonzaguinha, também cantor e compositor de talento e de grande sucesso, morto em acidente de trânsito pouco anos depois da morte do pai. As relações tensas entre eles foram expostas no excelente filme Gonzaga – de pai pra filho, amostra de um bom filme brasileiro num bom momento do cinema nacional, dirigido por Breno Silveira.
Bom, poder comemorar os cem anos do nascimento de alguém que mesmo morto vive, como o povo brasileiro fez na semana recém-terminada.
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