Um século de um homem bondoso: a meu pai

Jornal O Estado do Maranhão

Mario Vargas Llhosa disse, a respeito de seu pai, na semana passada no debate de abertura da 25ª edição da Feira Internacional de Livro de Guadalajara, no México: “Tinha medo muito medo dele, e a literatura virou uma possibilidade para que eu mantivesse a dignidade.”
Menciono a declaração do escritor peruano não com a intenção de fazer um julgamento acerca de seu liame – ou sua ausência –, com o pai, mas de referir-me às infinitas formas de que pais e filhos se utilizam em seus relacionamentos, cada uma produto de uma história pessoal e por isso mesmo única. A minha com o meu pai era de outra natureza.
A quarta feira passada marcou os 100 anos de nascimento dele, Carlos Saturnino Moreira, falecido em 1986, filho do comerciante Lino Antônio Moreira. Quando este morreu em 1928 do século passado, vítima de complicações de diabetes, até hoje uma ameaça a seus descendentes, o filho Carlos, da prole o mais velho do sexo masculino, tornou-se o chefe da família com apenas 17 anos. Havia a necessidade de orientar os irmãos e irmãs daí por diante e, sobretudo, de assegurar a sobrevivência material deles, até que pudessem andar pelas próprias pernas: Aldenora, a mais velha de todos, Lino Antônio Moreira Filho, Pérola, Cecília, João e Dayse, mais a viúva Josefina, minha avó.
Entre as virtudes de Carlos, essa, da coragem de colocar sobre os próprios ombros tanta responsabilidade tão cedo na vida, sem mãos de fora do círculo familiar que pudessem ajudá-lo, numa cidade acanhada e escassa em oportunidades, contando apenas com sua determinação de trabalhar e o sentimento de sua obrigação com os seus, é uma das que mais me comovem.
No mundo dos negócios, nunca agiu com a dureza quase sempre associada às atividades econômicas, para ter o sucesso que garantiu a seus filhos a melhor educação da época em São Luís. Temperamento afável e conciliador, dificilmente dizia não, em especial aos filhos e à esposa Maria, que cuidava da disciplina dos filhos nos estudos e em tudo mais. Nada conseguia estressá-lo ou colocá-lo em pânico. Nem a notícia, na madrugada indelevelmente gravada na minha memória, do incêndio do escritório da sua firma de representações na Praia Grande, em sociedade com o português seu Azevedo, como o chamávamos. “O seguro cobre os prejuízos”, ele disse sem se alterar.
É na imagem deixada nas mentes e corações dos filhos, como um homem bondoso, que mais vejo aquela ausência do medo que assombrava Vargas Llhosa. Isso me leva, ao recordar algumas passagens de minha infância e a colocá-lo entre os meus heróis arquetípicos e eternos. Imaginem por um momento um homem e seu filho pequeno, meio calado e muito tímido, num ônibus a caminho da escola. Na confusão da hora de sair do veículo ele se coloca à frente do menino e vai abrindo passagem heroicamente até descer à rua. Quanta coragem, ninguém me faria mal algum, disso eu podia ter certeza.
Agora me vejo de novo, em tempo mais recuado, ao saltar do ônibus na rua do Sol, quase na esquina da rua de São João, caminhando, seguro pelas mãos de meu pai, até a residência de minha avó Marcelina na rua Cândido Ribeiro entre a Rua Grande e a de Santana, para aulas na escola das irmãs Varelas. O esforço que eu fazia na tentativa de acompanhá-lo, com meus passos curtos em comparação com os deles, larguíssimos, não me incomodava. Antes, aumentavam minha admiração pelos passos do gigante. Poxa, quando eu crescer vou andar assim também, eu vinha repetindo comigo mesmo.
Um hábito, já antigo quando eu tive consciência de estar no mundo, bem revelador do relacionamento dele com os filhos, que não era feita, no entanto, de muitas conversas, era o de, perto da hora de sua chegada para o almoço por volta das 11 horas (almoçava-se então mais cedo) tomarmos banho a fim de aguardá-lo. Então, quando ele entrava em casa, aquela fieira de meninos corria até ele ainda no terraço da casa do Monte Castelo e, em completo alvoroço, começava a gritar, todos ao mesmo tempo: quero beijar, quero beijar. Então, um a um, o beijávamos no rosto e ele a nós e à sua mulher, minha mãe.

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