Uma carta
Jornal O Estado do Maranhão
Tenho uma carta diante de mim e de minha emoção que não é pouca. É a respeito do artigo que escrevi, há algumas semanas, sobre a travessia que se fazia em pequenos barcos, aqui em São Luís, da Beiramar para a Ponta da Areia, antes da construção da ponte do São Francisco. Com a desculpa de avivar minha fraca memória, acerca das marcas e modelos dos carros da época, o remetente se põe a fazer elogios, com sinceridade e justiça, tenho certeza, a meu pai, Carlos Moreira, de quem falei. Dizem que santo de casa não faz milagres. É verdade, menos no caso dos filhos, para quem os pais serão sempre heróis. Foi isso que a carta me fez sentir e lembrar primeiramente.
Mas não foi só isso. A referência às “viagens” a São José de Ribamar, “com direito a despedida”, levou-me de volta ao momento em que, de certo trecho da estrada, num ponto alto, se avistava, como ainda se avista, a cidade do santo lá longe. Era nesse momento que o céu, uma imensa redoma azul e branca, se amarelava e se avermelhava com sol e a poeira da estrada sem asfalto. Tocava o mar lá na frente e todo o resto em volta, sobre as nossas cabeças de viajantes cansados, mas felizes. Aquele mar nos esperava com suas estranhas marés que recuavam distâncias enormes.
O garoto que via aquilo sentia que o grande mundo desconhecido, o mundo fora de seu bairro tornado pequeno naquela hora, devia caber inteiro naquele espaço infinito. Antes o bairro lhe parecera tão grande! Monte Castelo, em outros tempos Areial, lugar de empinar papagaio, jogar bolinha de gude, pelada, botão e onde um roubo de galinha era razão para comentários entre os vizinhos durante semanas. Os roubos não eram tantos.
Continuo a leitura e, de repente, a geografia muda. Revejo South Bend, em Indiana, onde morei, já adulto, por mais de cinco anos. Lá foram fabricados os automóveis da marca Studbaker, do primeiro ao último, até o fechamento da fábrica. Ficou um museu, com os modelos todos que pude admirar algumas vezes. É que o homem da carta é um especialista em carros antigos. Por isso, pode informar que entre os “carros de praça” dos anos cinqüenta em São Luís, um, de Dadeco, a quem também me referi no artigo, era justamente um Studbaker, modelo Champion, ano 1950, de cor entre bege e marrom.
Agora que, para alívio de minha aflição, fui socorrido desse esquecimento, um clarão me deixa ver o carro a conduzir metade de minha família de muitas crianças. A outra metade seguia, talvez, no Pontiac preto, ano 1947 de Astrolábio ou no Oldsmobile, ano 1950 de Pindobussu. Íamos para o pequeno aeroporto da cidade, ao qual se chegava apenas pelo Anil, para receber, vindo de Recife, onde morava, meu tio e padrinho Lino Antônio Moreira Filho; ou minha tia Aldenora Moreira Bello, a tia Dedê, como a chamávamos. Chegava ela, quase sempre, do Rio de Janeiro, em avião modelo Constellation, da empresa aérea Panair do Brasil. Ambos irmãos de meu pai.
O tio vinha passar as férias, de “alto funcionário do Banco do Brasil”, com os irmãos e a mãe, Josefina, minha avó. A tia estava sempre no vaivém de mulher de político e tinha de ir freqüentemente à capital do país na época. Newton Bello, mais tarde governador do Estado, padrinho do meu irmão Luís Carlos, era o seu marido.
Devo, o ter me lembrado agora dessas coisas, a um amigo. O pai dele, Adelino Silva, era amigo do meu e honrado da mesma forma. Sem as informações que Fernando Silva me dá na carta, eu nunca conseguiria reconstruir completamente essa parte das lembranças de um passado que me é tão querido. Como ele diz, com muita propriedade, “vivenciar reminiscências faz bem àqueles que conservam na memória lembranças de seu passado e se comprazem em contá-las”.
Por um desses sortilégios tão comuns, a que chamamos de coincidência, que a vida nos impõe, substituí Luís Fernando Moura da Silva, filho também de Adelino, na direção da Auditoria Geral do Estado, onde trabalho atualmente. Assim la nave va.
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