A tia
Jornal O Estado do Maranhão
Sou de uma geração criada em famílias grandes. Grandes não apenas porque os casais tinham muito mais filhos do que têm hoje, mas, também, pela convivência das gerações. Tinha-se contato freqüente, além dos irmãos e dos pais, com tios, primos e avós. O estilo de vida era outro e as exigências de sobrevivência econômica menores. Havia sobra de tempo para uso em formas de socialização hoje em desuso.
Sem a televisão, computadores e jogos eletrônicos, as crianças tinham a oportunidade de estar mais vezes com as outras de sua idade. Os adultos podiam visitar os parentes e amigos à noite ou em fins de semana, sem nenhum sentimento de culpa pela conversa jogada fora. Os aniversários eram grandes e alegres reuniões familiares nas quais o espírito de camaradagem espontânea estava sempre presente. Ou dizer isso, agora, será mera idealização? Fico sem saber ao certo. Em famílias grandes, os conflitos são inevitáveis.
Entre as minhas tias, uma participou mais de perto das vidas de todos os sobrinhos. Foi a tia Dayse. Para imensa tristeza da família, ela acaba de morrer, sem filhos biológicos, com a idade de oitenta e um anos. Faço este registro por achar que não apenas os famosos e ricos merecem necrológios. Talvez eles sejam os menos precisados dessas homenagens, por já receberem sua cota de muitos e entusiasmados elogios em vida, algumas vezes até com justiça.
Única dos nove irmãos a entrar no novo século, foi a eles se juntar na desconhecida e misteriosa terra do após vida. Por que nunca se casou? Não sei. Sabe-se de olhares para os rapazes de sua época, sendo mais de uma vez correspondida. Nunca chegou, porém, a falar sobre o assunto. Eternos, esses mistérios do coração! Tenho comigo, porque conheci seu amor pelos sobrinhos, que ela pensava ser impossível, casando, ter a quantidade de filhos que veio a ter sendo tia-mãe, como foi. Escolha admirável.Ajudou a criá-los todos, com incansável dedicação. Foi assim com os filhos da irmã Aldenora e dos irmãos João e Carlos Saturnino Moreira, meu pai. Não apenas ajudou a encaminhar-nos na vida mas criou, mesmo, três de nós, minhas irmãs Lina e Erina e meu irmão João Carlos.
Quem, em tempos mais recentes, a ouvisse fazer referências a “os meninos” ou “as meninas” não pensaria que ela estava falando de pessoas de quarenta ou cinqüenta anos, ou mais, que já lhe haviam dado netos e até bisnetos. Não dizem que, para as mães de verdade, os filhos nunca crescem? São sempre frágeis e desamparadas crianças sem capacidade para enfrentar o mundo cruel lá fora, na ausência da proteção materna? O melhor a fazer é protegê-las carinhosamente, as pobres criaturas.
Aí está a origem de sua preocupação, quase uma obsessão, com a alimentação das “crianças”. Durante os meus dez anos de residência em Brasília, eu vinha muitas vezes, a serviço, a São Luís e ficava com ela. As ofertas, quase imposições, de papas e mingaus, na hora de dormir, ou de doces e outros mimos o dia inteiro, era tantas que eu tinha de alegar ordens médicas ou o peso acima do normal para evitar os excessos. Resistir inteiramente era impossível, especialmente deitado na rede que ela armava quando eu chegava.
Uma das lembranças mais vivas para mim são suas celebrações gastronômicas. Nada era combinado. Mas sabíamos que, se aparecêssemos na casa dela, antes de seguir para os festejos de Carnaval ou para os arraiais de São João, iríamos encontrar o mingau de milho, o bolo de tapioca, o manuê, o bolo de chocolate, os pudins, a feijoada, a galinha ao molho pardo, a bacalhoada, a peixada, a torta de camarão e tudo o mais que os médicos proíbem aos diabéticos como ela. Ela aproveitava essas ocasiões para alegremente contrariar as recomendações médicas.
Restam agora as lembranças perenes. Elas povoarão nossa memória. Seremos testemunhas da herança que a tia Dayse deixou. Não foi exatamente como a do poeta Tribuzi, de “filhos e sonetos”. Mas foi de sua parte mais nobre, a de filhos. E mais de netos, bisnetos e amigos.
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