Sérgio Barreto

Jornal O Estado do Maranhão
Os amigos chegavam aos poucos, a partir das dez horas, buzinavam, abriam eles mesmos o portão e entravam sem pedir licença. Iam direto à cozinha, abriam a geladeira, tiravam uma cerveja, ou uma coca-cola, no congelador desde cedo, e sentavam-se a fim de conversar nos sábados pela manhã, na casa do Ipase. Falávamos de tudo e de nada, de todos e de ninguém.
Conversávamos sobre coisas aparentemente triviais. O futebol, por exemplo, especialmente na época de Copa do Mundo, como nestes dias. Isso, acho, trouxe-me à lembrança agora aquelas manhãs em que nossos problemas e angústias do dia-a-dia desapareciam durante algumas horas. Perguntávamos pelas pessoas e por Zico, o cachorro pinsher da casa. Havia sumido de novo?
O dono da casa, com um característico senso de humor e com um exagero muito próprio, dizia nunca ter visto tanto choro em toda sua vida como quando chegou a notícia do atropelamento que deixara o animal cego de um olho e capenga. “Quando eu morrer, vai ter menos choro aqui em casa do que prá Zico”.
Poucos anos depois, quando ele veio a falecer, todo mundo compreendeu sua intenção. Ele estava querendo dizer que não lamentassem tanto se ele por acaso morresse em um futuro próximo. Sua doença, no entanto, anda não havia se revelado, com toda sua indiferença pela sorte dos homens bons. Qual intuição misteriosa o levou a pressentir a tragédia na véspera da chegada dela?
No meio da tarde e do expediente de trabalho, na Secretaria do Meio Ambiente, recebo uma ligação de Gastão Vieira. Ele me diz não ter boas notícias sobre a saúde de Sérgio Barreto. Fomos ao Ipase. Nos dois anos seguintes, aquele foi o único momento em que o vimos admitir um pouco de medo. No entanto, estávamos ali, eu e Gastão, em frente a um amigo fraterno e querido, parte importante de nossas vidas, conselheiro, orientador, moderador, crítico, guia, pai e irmão, sem saber o que dizer, recusando-nos, revoltados, a acreditar no aniquilamento físico de uma pessoa com tanta vida para viver ainda, paralisados mentalmente, tomados pela emoção, e eis ele a consolar-nos. Não havia de ser nada, a medicina tinha recurso para as piores enfermidades.
Penso constantemente na coragem dele em enfrentar aqueles anos de luta contra o mal traiçoeiro do câncer, sem jamais lamentar-se, sem achar que outros, menos nobres, poderiam, ou deveriam, ter sido os atingidos, sem se queixar do destino cruel, sem descuidar da preparação meticulosa da vida de sua família para depois de seu desaparecimento e sem deixar de presidir nossas reuniões dos sábado, tomando sua cerveja, sentado em sua cadeira preferida ou semideitado na rede do terraço.
Nessas ocasiões, quando se referia à doença, mostrava sempre otimismo e confiança. Mas, conhecendo seu espírito realista e sua forma de encarar a vida e a morte sem nenhuma ilusão, sei que ele queria, com essas manifestações, evitar o sofrimento de sua família – sua mulher Leda, seus filhos Caio e Vanda – e de seus amigos. Não fora assim, eles sofreriam por acreditar que ele poderia estar sofrendo. Ele esteve sempre consciente de tudo, mas fingia não conhecer a sentença irrevogável.
A morte de um grande amigo sempre nos rouba um pedaço de vida. Ficamos também instantaneamente mais próximos do fim, pelo sofrimento e pelas referências perdidas. Certas experiências e lembranças em comum, compartilhadas, morrem também e assim morremos um pouco. Foi esse meu sentimento quando tudo acabou.
Na véspera de sua morte, quando entrei em seu quarto, ele me olhou, entre sentado e deitado na rede, como em outros tempos, quando eu chegava naqueles sábados, e disse: – Senta aí, pô. Era sua maneira de ser carinhoso com os amigos. Foi a última vez que o olhei vivo e foram as últimas palavras que ouvi dele. Fiquei calado. Apenas me sentei e fiquei olhando uma vida chegando ao fim. Não sei se ele viu as lágrimas nos meus olhos. Eu percebi que era chegada a hora de sua alma descer aos lugares pálidos, duros, nus. Ele também.

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