O leão e cabul
Jornal O Estado do Maranhão
O leão de que falo não é nenhum valente guerreiro tribal afegão, possível herói da defesa de Cabul, na batalha recente que, afinal, não houve, pela sua posse. É o rei da selva mesmo, de nome Marjan, do zoológico da cidade. Seguindo sua natural propensão para devorar seres humanos insensatos o suficiente para aproximaram-se demais dele, especialmente quando o irrecusável apelo da fome se apresenta, abocanhou um combatente. O super-homem havia entrado na jaula para demonstrar valentia. O irmão do imprudente, num acesso de fúria santa que seria aplicada com melhores resultados nos campos de batalha, vingou-se jogando uma granada no animal, arrancando-lhe um olho e deformando-lhe o focinho. Pobre leão! Pôde apenas conservar sua vasta juba, restos inúteis de sua majestade espezinhada.
Melhor sorte teve outro rei, o do Afeganistão, Mohammed Zaher Sha. Retirado, em 1973, de posto vitalício, onde pretendia ficar por toda sua eternidade terrena, foi, deposto, para a Itália, cercado de poucos mas fiéis súditos e amados familiares. Saiu ileso, fisicamente, embora justamente desiludido com a ingratidão humana. Em Roma, teve o tempo de 27 anos para filosofar sobre a transitoriedade do poder e da vida e sobre a importância da lealdade, em falta no seu país.
Mas, ao contrário de seu colega animal, conservou algo de sua majestade, tendo melhor destino do que seus sucessores. Mohammed Daoud, seu substituto, foi assassinado em 1978; Noor Mohammed Taraki, substituto do substituto, foi chacinado, em 1979, por Hafizullah Amin, que lhe tomou o lugar, apenas para ser eliminado quando os russos invadiram o país e colocaram Babrak Karmal no trono de balanço.
Recebo, agora, uma mensagem, por correio eletrônico, de uma associação americana chamada Tiger Touch (Toque de Tigre), parte de uma rede chamada Great Cats in Crisis (Grandes Gatos em Crise), de organizações dedicadas “a resgatar e oferecer santuário para os grandes gatos com a vida em perigo”. Esse pessoal anda aflito com a sorte de Marjan e outros animais do zoológico da capital do Afeganistão. De tanta preocupação, estabeleceram um fundo denominado The Marjan Relief Fund (O Fundo de Socorro Marjan), para prover a alimentação e os remédios necessários ao leão de Cabul.
Nada a reparar em tal esforço. É inequívoco sinal de nobreza de sentimentos. Vejam, por exemplo, o lema da organização: ”Leões precisam de amor também”. Além disso, dos dois reis, o mais indefeso e necessitado é o leão, embora ambos já estejam entrados em anos. O rei humano, em verdade ex-rei, dispensa qualquer proteção, pois já tem a dos amigos americanos, russos, ingleses, australianos e outros. Talvez por afirmar sua intenção de querer, apenas, colaborar para a formação de um governo de transição. Diz não pretender ter o trono de volta. Se for verdadeiro, tal desejo mostra bem sua diferença para o rei animal que jamais renunciaria ao poder. Mesmo velho e doente.
Mas, eu fico pensando nos súditos, ou ex-súditos afegãos. Não seriam eles os mais necessitados desse socorro? Não seria o caso de dar-lhes prioridade, mesmo que tão-somente por solidariedade, vamos dizer, de espécie, de humano para humano? Não foram eles que, muito mais do que granadas, receberam bombas sofisticadas, “inteligentes”, “cirúrgicas”? Cirúrgicas a ponto de, como em cirurgias de verdade, matarem o sujeito antes que ele desconfiasse da morte iminente, o que não deixa de ser um verdadeiro ato de piedade cristã, por evitar às vítimas a angústia de encarar o fim inevitável.
A Tiger Touch diz reconhecer a ocorrência de “muito sofrimento humano”, mas que “nós somos também responsáveis pelos animais que mantemos cativos”. Correto. No entanto, não será mais humano dar prioridade ao alívio da dor humana? Alguém acha que os afegãos, seja de que etnia forem, não são humanos, são feras?
Afinal, quem é mais feroz? O leão, tão maltratado e humilhado pelos homens, ou os homens, destruidores impiedosos de seus semelhantes e de animais?
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