Noite amiga
Jornal O Estado do Maranhão
É de Machado de Assis o famoso verso “mudaria o Natal ou mudei eu?”. É parte do “Soneto de Natal”, que fala de um homem que “naquela noite amiga” relembra seus dias de garoto. Quer, melancólico, reviver com versos as impressões de sua infância feliz. Mas, frente à folha branca, que hoje seria a tela do monitor de vídeo do computador, a inspiração se ausenta, “frouxa e manca”. Só lhe ocorre “o pequeno verso”, que se tornou grande com o correr dos anos.
Que a expressão tenham permanecido, a ponto de entrar para o patrimônio particular de nossa bela língua, como um baú de onde todos podemos tirar um quinhão de filosofia popular e de senso comum, é prova da força extraordinária do fundador da Academia Brasileira de Letras. O soneto começa dando a impressão de desejar falar exclusivamente sobre o dilema do homem comum, dilacerado entre o desejo de expressar sentimentos e a incapacidade de fazê-lo.
Exatamente como Pestana, do conto “Um Homem Célebre”, do próprio Machado. Sendo um compositor de sucesso, de polcas muito populares, o personagem não conseguia compor peças clássicas, como gostaria. Quando sua mulher morreu, na noite de Natal, ele jurou compor um réquiem para a missa de um ano da morta. Em vão. Só lhe saíam plágios involuntários de Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann e de outros.
O soneto termina, então, em uma nota surpreendente, com a famosa pergunta. De repente, somos transportados do problema existencial da oposição entre querer fazer e ter a capacidade de fazer, para o outro, muito mais abrangente, o da mudança versus permanência, que tem criado muita discussão entre filósofos, de verdade e de botequim, com imenso gasto de tempo, tinta e papel.
É claro que a pergunta é apenas retórica. Bem sabe Machado que o Natal mudou, como nós mesmos, o tempo todo.
Quem não se lembrará dos natais de sua época de criança? Ia-se dormir cedo para receber logo os presentes que Papai Noel vinha trazer. As tentativas de ficar acordado, mas de olhos fechados, fingindo estar dormindo, esperando o bom velhinho, eram inúteis. O sono sempre vencia a ansiedade e a curiosidade. Quando se percebia alguma coisa, os presentes já estavam debaixo da cama.
Fico a imaginar, muitas vezes, meus pais entrando no quarto, na ponta dos pés, contemplando nossos rostos sonhadores de crianças, para cumprir a tradição milenar, eterna, de nossa cultura. Quem ficava mais feliz? eles ou os filhos? Vejo hoje que acordávamos com a sensação de que a felicidade era o estado natural e permanente do ser humano.
Mudou o Natal, afinal? Lembro que os brinquedos não tinham sofisticação nenhuma, comparados com os de agora, sendo relativamente caros pelos padrões mais recentes. A fábrica de brinquedos Estrela tinha um tal domínio do mercado que ficávamos decpcionados, se ganhávamos um de outra marca. Em compensação, a variedade era menor, com escolhas mais restritas. Acho curioso os papais noéis de hoje, com aquele ho-ho-ho meio ridículo, copiado dos americanos.
Mudamos nós? Mudamos. Nossas atitudes se modificaram, muitos preconceitos caíram, somos mais tolerantes, melhoramos materialmente de vida. Mudamos nossa maneira de querer mudar o mundo. Agora, tentamos transformá-lo com mais cuidado, para evitar a repetição dos desastres humanos e sociais que vimos no século XX e continuamos a ver neste.
Mas, acho que foi na maneira de presentear que mais alteramos nosso comportamento. Passamos a encarar essa simbologia da amizade como mera obrigação. O dar e receber presentes no Natal perdeu um pouco o espírito natalino. Muita gente não faz mais a ceia de Natal. Prefere viajar, fugindo do estresse urbano, para encontrar nas estradas congestionadas, e nos aeroportos e aviões cheios, mais estresse.
O fato é que, mesmo mudando, o Natal permanece como o metáfora da paz universal possível, apesar da violência e irracionalidade do mundo em que vivemos. Esse é, para mim, hoje, seu verdadeiro sentido. É o que permite desejar feliz Natal a todos.
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