Mudaria o Natal...

Jornal O Estado do Maranhão
A história do cristianismo é admirável. Como foi possível a um grupo de homens simples do povo, rudes, sem luzes, fundar uma religião que viria a ser, menos de quatro séculos depois da morte de seu criador, a religião oficial do império romano? Quem, vendo ou vivendo as perseguições, por motivos políticos, principalmente, sob os imperadores Nero, Décio, Diocleciano e Galério, poderia prever a glória terrena da igreja de Cristo de coroar reis e rainhas e substituir o próprio império por outro? Que milagre foi esse?
Será lícita aos crentes a alegação da justeza dos ensinamentos de Cristo e do caráter de revelação divina da sua palavra. Naturalmente, outras religiões poderão socorrer-se de argumentos semelhantes para sua autojustificação. Não estamos impedidos, porém, de procurar o que Edward Gibbon, no seu justamente famoso Declínio e queda do império romano, chama de “segundas causas”. Diz ele que as principais razões para vitória tão espetacular foram o zelo dos cristãos, sua crença na imortalidade da alma, os proclamados poderes miraculosos da igreja primitiva, a moralidade pura, austera e até intolerante de seus membros e a unidade e disciplina deles. Ele afirmou até que a queda do império deveu-se à ascensão do cristianismo.
O período de crescimento, mas não, ainda, de triunfo, que veio em seguida ao início modesto e incerto, foi objeto de uma percepção inspirada de Flaubert: “Os deuses não existindo mais, e o Cristo não existindo ainda, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”. Aí está uma bela síntese do raro momento histórico em que grande parte da humanidade possuía apenas a si mesma na busca da felicidade, livre do medo do castigo eterno e livre também da ansiedade pela recompensa igualmente eterna. Ao fim, porém, mortos os deuses romanos, nasceu o deus único da nossa tradição.
Seja qual for a natureza das explicações, os cristãos venceram e nos legaram grande parte do que de permanente e elevado temos em nossa cultura, a despeito dos maus exemplos da época em que a igreja, como instituição bem humana, se viu tomada pelas paixões deste mundo. Não se pode imaginar, no entanto, nossa sociedade sem a influência dos valores e tradições cristãos. O Natal, por exemplo. Como chegar ao fim do ano sem ele?
A palavra que me ocorre quando penso no Natal é suavidade. Há uma atitude pacificadora das pessoas expressa na simbologia da troca de presentes. A manhã desse dia é quando as crianças — não todas, por certo, que há as desafortunadas —, gravarão para sempre em suas mentes e corações a felicidade pelos presentes tão sonhados que atribuirão a Papai Noel. Elas recordarão esses momentos pelo resto de suas vidas. Isso é parte de nossa herança comum e de nossa obrigação de transmitir às gerações seguintes o que de bom recebemos das anteriores.
A magia do Natal tem atraído grandes escritores, de todos os tempos, em todas as literaturas do mundo cristão, como Charles Dickens e Machado de Assis. Do brasileiro, um agnóstico assumido, um dos mais belos contos é A Missa do Galo, obra prima do conto “sem enredo”, que, mesmo sem tratar diretamente do Natal, mostra o hábito dos cariocas no século XIX de ir àquela missa. É dele também o Soneto de Natal que contém um verso muito conhecido que, de tão citado, quase deixou de ter autoria, passando ao patrimônio cultural de nosso povo: “Mudaria o Natal ou mudei eu?” O Natal não muda, mas nós mudamos no Natal, para deixar vir à luz, ainda que durante poucos dias, a criança que nunca deixaremos de ser.
Como ensina o triste Eclesiastes, livro de sabedoria judaica, de Salomão, há tempo para tudo sob o sol. O tempo hoje é de desejar um feliz Natal a todos.

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