Didi
Jornal O Estado do Maranhão
Sou de uma geração que testemunhou o crescimento e consolidação do prestígio do futebol brasileiro. Quando o Brasil ganhou a primeira Copa do Mundo, na Suécia, em 1958, eu tinha 10 anos de idade. A Itália e o Uruguai já haviam vencido, então, duas vezes cada. A Alemanha, uma.
A participação brasileira nas competições anteriores, no entanto, tinha sido boa. Ficamos em terceiro lugar em 1938, quando o artilheiro foi um brasileiro, Leônidas da Silva, e em segundo lugar na Copa seguinte, em 1950, quando também tivemos o artilheiro, Ademir. Neste último ano, possuíamos um time excepcional, mas perdemos para o Uruguai, no Maracanã.
O fracasso gerou um derrotismo no torcedor brasileiro que somente começou a ser superado com a vitória de 1958. Depois, consolidamos nossa posição com as vitórias em 1962, 1970 e 1994, o segundo lugar em 1998, o terceiro em 1978 e o quarto em 1974. Em dezesseis campeonatos, o Brasil esteve entre os quatro primeiros colocados nove vezes.
Dos grandes craques brasileiros da campanha da Suécia, um dos mais talentosos era Didi, chamado por Nélson Rodrigues de “príncipe etíope de rancho”. Não príncipe etíope, apenas, mas, de rancho. Creio que o grande dramaturgo brasileiro queria enfatizar a elegância e o orgulho racial do negro, espontâneos em Didi, em contraste com a falta de naturalidade de um príncipe qualquer, de verdade, porém artificioso, submetido a mil etiquetas e protocolos.
O príncipe de rancho, como o mestre-sala de escola de samba, desfila com uma naturalidade que vem da intuição que tem de seu poder mágico de encantar, de cativar, de provocar admiração. Assim era Didi a cada minuto de jogo, improvisando gestos de efeitos surpreendentes com a arte nascida do seu jogo elegante.
Didi jogava olhando a linha do horizonte, como se observando e admirando o vôo leve de um pássaro ao longe. Chegava perto de colocar a mão em concha acima dos olhos para ver melhor. Não se dignava de baixar a cabeça para ver a bola escravizada, ou os adversários. O que ele fazia era vislumbrar o colega e enfiar um passe de 30 ou 40 metros. A bola, outro pássaro, amestrado, em suave e serena trajetória, dava a impressão de querer ir além da intenção dele, somente para diminuir a velocidade e jogar-se aos pés de um agradecido companheiro.
Foi dele o gol que classificou o Brasil, em jogo em que vencemos o Peru por um a zero, nas eliminatórias para a Copa de 1958. Em cobrança de falta, ele marcou com um chute de curva, conhecido como folha-seca porque a bola subia, dando a impressão de querer passar por cima das traves, e, de repente, caía dentro do gol. Marcou outro gol histórico: o primeiro do Maracanã.
A importância de Didi pode ser avaliada pelo seu salário. Quando ele se transferiu do Fluminense para o Botafogo, em 1956, passou a receber 70 mil cruzeiros por mês. Para comparar, vejam que Garrincha ganhava 16 mil. Conseguiu um aumento para 18 mil, por causa do príncipe. Nílton Santos, outro craque, passou a ganhar 30 mil cruzeiros, menos da metade do salário de Didi. O jogador mais bem pago, até então, era Zizinho: 30 mil também!
A vida do craque com sua mulher, Guiomar, era esmiuçada permanentemente pela imprensa, o que não acontecia com nenhum outro jogador. Dizia-se que “Risque”, canção do tipo dor-de-cotovelo, foi composta por Ary Barroso para Guiomar, depois do casamento dela com Didi. O compositor perdera a esperança de ver seu amor correspondido por ela. Outra história dizia que, se o craque estava bem com a mulher, jogava bem; se estava mal, jogava mal. Mistérios do amor.
A morte recente de Didi servirá para renovar o exemplo de dedicação ao Brasil que ele deu às gerações que sucederam à sua. A geração atual, tão talentosa quanto qualquer outra, mas submetida à irresponsabilidade dos dirigentes, saberá superar a atual crise do nosso futebol. Ela passará. Voltaremos a nossos melhores momentos. Como os que Didi nos deu.
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