Bingo

Jornal O Estado do Maranhão
Eu vi Bingo na televisão. O pobre caminhava surpreso, deprimido, alheio ao ambiente, indeciso, sem rumo, com o olhar perdido no horizonte, cheio de revolta contra as injustiças da vida. Não caminhava propriamente. O coitado era conduzido por um amigo que, de vez em quando, acariciava-lhe a cabeça e enxugava-lhe, furtivamente, incontroláveis lágrimas, saídas dos olhos melancólicos de Bingo.
Ele fora preso. Até aquele momento, não sabia por quê. O que acontecera? Qual o seu crime? Assaltara, roubara, matara, atentara contra a economia ou a segurança nacional, comandara um ataque especulativo contra a moeda nacional, dera um golpe no mercado financeiro, sumira com o dinheiro de fundos de pensão, renegara a pátria? Falara mal do presidente, do papa, dos evangélicos, dos militares, dos políticos? Envolvera-se em um incidente diplomático? Nada disso. Mordera um vizinho. Mordera? Sim, mordera.
Ele irritara-se com algo desagradável nos modos do vizinho e, usando um meio de expressão próprio de um cachorro, já que ele era um, dera-lhe uma mordida em parte do corpo que não sei qual seja. Com certeza, em um local deveras sensível, a julgar pela reação do ofendido. Este o denunciara a uma autoridade da cidade. Imediatamente, Bingo fora levado preso ao Centro de Controle de Zoonozes local, sem qualquer investigação aprofundada, sem nenhuma oportunidade de defesa.
Cachorro também é humano, como se sabe desde quando o Ministro do Trabalho do governo Collor, Rogério Magri, anunciou, indignado, essa descoberta. Falava de sua cadela, Orca, vista a bordo de um carro oficial, rumo a uma clínica veterinária. Não surpreende, portanto, a humana reação de Bingo, de irritação, e, depois, de tristeza e revolta, pela surpreendente prisão.
Quem nunca teve um vizinho chato, inconveniente ou mal-educado? Em Brasília, eu tive um. Baterista de um grupo de roque pauleira, ele levava toda a banda para ensaiar no apartamento ao lado do meu, nos fins de semana. Dava vontade de morder o sujeito. Por que Bingo não poderia sentir o mesmo impulso?
Mas, afinal, era ele um feroz pit bull, um enorme fila brasileiro, um apavorante rottweiler de filme de terror? Tinha uma história de viver mordendo todo mundo, só por maldade, para falsificar sua condição de humano e passar por espírito de porco, ou melhor, de cachorro? Não, de jeito nenhum. Considerando sua humanidade, até se poderia classificá-lo como um cara pacato, ordeiro e cumpridor dos deveres.
Em verdade, ele é uma mistura de poodle com pequinês. Por aí, imaginam-se logo suas limitações físicas. Não poderia ser um desordeiro, ainda que desejasse. Ninguém se sentiria intimidado pelos dentes dele. Vai ver, ele quis tão-só dar um susto no chato, não morder de verdade. Uma compreensível reação, um impulso momentâneo, mas incontrolável.
Era de ver os prantos e a desolação de sua dona. Digo dona e digo mal. Não seria adequado, ou politicamente correto, classificar um dos parceiros como tal em uma relação entre humanos. Melhor seria chamá-la de amiga, orientadora, companheira de Bingo, ou de qualquer outra coisa. Dona, nunca. Com muito senso de justiça e justificada revolta, ela perguntava por que não se prendiam esses bandidos que vivem à solta por aí ameaçando todo mundo, cometendo todo tipo de crime, comportando-se como autênticos cachorros doidos, prontos para atacar a qualquer momento.
Agora está lá, Bingo, no Centro, em perigo de contaminação por doenças de outros cachorros, quer dizer, de outros humanos, que viviam ao deus-dará pelas ruas sujas da cidade. Pior seria, contudo, ter o destino do cachorro de Bill Clinton. Depois de ter vivido muitos momentos de glória, como o primeiro-cachorro do país mais poderoso do mundo, o infeliz foi atropelado e morto ingloriamente, como um reles vira-lata.
Bingo, pelo menos, tem a esperança de que a autoridade se compadeça de sua triste situação e o faça retornar, vivo e alegre, para perto da sua humana amiga, mas para longe do seu desumano vizinho.

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