A avó

Jornal O Estado do Maranhão
O menino gostava de ouvir as histórias da avó. Ela chegava às sete horas da noite, pequenina, ligeira, decidida como em tudo que fazia. Sentava-se em uma cadeira de balanço de madeira e lona no terraço do bangalô estilo anos 50, para conversar com a filha e encantar os netos. Abençoava uma a um antes de pegar, para abanar-se, o leque suavemente perfumado (cheiro de missa, de igreja?). Se não o trazia, usava o abano de palha de atiçar os fogareiros. Não era raro ela fumar um cigarro. Ele achava esquisito. Fumar não era coisa de homem?
Trazia fragmentos do dia e da vida trivial só na aparência. A feira pela manhã, o emprego dos filhos, as dificuldades da vida, os vizinhos abelhudos, as zangas com a nora, os comentários da rua estreita e pequena, os bentivis e as andorinhas no beiral da porta-e-janela no centro da cidade.
Nessa casa, uma telha deslocada deixava o sol marcar as horas com um raio oblíquo, formando um feixe de luz de partículas de poeira em suspensão, que desciam e subiam entre o teto e o piso. Relógio imprevisto nas tardes luminosas e calorentas. Quando o sol no chão estava de um lado da rede armada no quarto pequeno, era quase meio dia. Quando passava para o outro lado, eram quase duas horas.
Trazia também o interior, Cajapió, conhecido dele tão-só pelas histórias contadas por ela, de gente, de boi, de cavalo, de mato, de mar, e pelos parentes humildes que ainda moravam por lá. Eles apareciam algumas vezes com suas falas melodiosas e sintaxe própria, curiosa para ele. Nos pés, grossos tamancos, sandálias de couro ou, por vezes, nada. Às costas, cofos de farinha d’água e de jaçanãs salpresas.
Eram presentes para a mãe e a avó, quem sabe para elas não esquecerem da terra, não perderem as raízes, lembrarem-se das origens depois de tantos anos na cidade. Para aqueles meninos da capital ficarem sabendo da existência de outros lugares, diferentes daquele onde nasceram e viviam. Falavam das pescarias, dos peixes de nomes estranhos, dos animais caçados. Almoçavam, saíam, visitavam outros parentes e voltavam ao anoitecer para o jantar. No dia seguinte iam embora, já saudosos de seu chão.
As histórias da avó formavam uma enciclopédia viva de encantamento e imaginação. Eram como as das mil e uma noites, uma nova a cada crepúsculo. Serviam para transmitir um sistema de valores éticos e morais universais, de lealdade, honestidade, solidariedade e fé. Esta não ficou no menino, apesar das tentativas de mantê-la e da freqüência constante a colégios religiosos depois.
Havia as de assombrações, almas penadas, cemitérios, bailes fantasmas, mortos-­vivos nos campos e cidades, vaqueiros castigados injustamente pelos patrões, fugas de romeus e julietas em belos alazães, amores impossíveis, castigo do destino a filhos pela rejeição aos pais, traições de amigos desleais. O real e o imaginário misturando-se. Em algumas, o recurso aos santos e a Nossa Senhora como remédio para as aflições do momento.
Uma falava-lhe com mais afeto ao coração e à imaginação. Era a de um navio encantado que podia ser visto da praia, por volta da meia-noite, a uma distância suficiente para ver-se sua comunidade fantasma. Ele cruzava lentamente toda a extensão da linha do horizonte, iluminado por intensa e branca luz que chegava até à areia, como um altar em procissão, inclinando-se levemente para um lado e para o outro. Depois voltava na direção contrária, tão belo quanto antes, carregando ainda na ponta do mastro maior uma estrela. Aparecia e desaparecia apenas para exibir sua beleza ofuscante.
Muitos anos após, ele assistiu ao filme Amarcord, de Fellini, recordação nostálgica, pelo diretor italiano, de sua aldeia de nascimento. Ao ver a cena da passagem do navio Rex todo iluminado, admirado por Gradisca, suas irmãs e o proprietário do cinema Fulgor, lembrou-se de sua avó, Marcelina Raposo, e compreendeu que ela e Fellini tinham algo em comum: a capacidade de transformar o amor pela terra natal na fina arte de recordar e contar.

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