1954
Jornal O Estado do Maranhão
A quase eleição de Marta Rocha como miss Universo, a Copa do Mundo da Suíça em que o Brasil perdeu para a Hungria, o suicídio de Getúlio Vargas e a presença de minha mãe na maternidade Benedito Leite, para ter uma menina, depois de cinco meninos em cinco anos, foram acontecimentos memoráveis de minha infância.
Todos foram de 1954, quando eu tinha seis anos. Mas, por um desses saltos mortais da memória, que nos leva a reconstruir incessantemente o passado, minha visão deles mudou, até que eu pudesse vê-los todos juntos, como parte de um abrir de olhos para a vida e seus mistérios sem resposta. Mas, por muito tempo, eu os vi distantes uns dos outros, cada um com sua capacidade singular de emocionar.
Na época, ou logo após, eu não poderia vê-los com o plácido olhar do adulto de hoje. Como poderia fazê-lo a criança que me contempla agora, com olhos serenos, ali do primeiro plano de uma foto antiga de casamento do tio Saul com Edilde, se mal tinha consciência de si e do mundo? Se tudo era ainda surpresa, novidade, se a vida era nova na velha cidade?
O Brasil começava a crer no próprio futuro, embora não houvesse ainda a euforia com o sucesso na Copa do Mundo de 1958, as vitórias de Maria Ester Bueno no tênis, a implantação de indústria automobilística, a projeção mundial da música brasileira, com a Bossa Nova, a construção de Brasília e da Belém-Brasília.
Em 1954 quase tivemos uma miss Universo, Marta Rocha. Como no futebol, que, em 1950, quase fora campeão mundial, para grande frustração nacional, a baiana Marta Rocha foi vice-campeã. Perdeu por causa de um quadril maior do que o busto em duas reles polegadas.
Atribuiu-se a derrota a uma suposta má fé dos juízes, por inveja da beleza brasileira. A revista O Cruzeiro, a de maior circulação na época, fez de Marta um símbolo de nosso potencial como povo. Eu ficava admirando as fotos daquelas belas mulheres, sem saber ao certo o que era polegada, mas sabendo que não devia ser uma coisa boa porque prejudicara a nossa miss. Maldita polegada!
Na Copa de 54, perdemos para o bicho papão do torneio, a Hungria, que acabaria sendo derrotado pela Alemanha na final. Ouviam-se os jogos em aparelhos de rádio a válvula, em ondas curtas. Esse tipo de transmissão provocava ruídos e oscilações no sinal do rádio. A gente tinha de colar o ouvido ao alto-falante para ouvir melhor os exageros dos locutores brasileiros. Sem televisão, tinha-se de acreditar nos seus arrebatamentos patrióticos. Os árbitros, coincidentemente, eram todos desonestos, contra o Brasil.
Foi em um daqueles aparelhos, da marca Zenith, em cima de uma prateleira de madeira presa na parede da sala, que ouvi os jogos, na nossa recém construída casa, no então tranqüilo bairro do Monte Castelo, cheio ainda de pitombeiras, mangueiras e jardins, por onde iam passear as pombas que eu criava, mal raiava “sangüínea e fresca a madrugada”.
Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto, quando minha mãe já estava na maternidade. Ela daria à luz sua única e desejada filha no dia seguinte, 25. Isso acabou ligando os dois acontecimentos na minha memória. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro dava, pela conhecida voz de Heron Domingues, no popular noticiário Repórter Esso, notícias da comoção nacional e tocava músicas fúnebres o tempo todo. Lembro bem dos ataques de grupos exaltados a Carlos Lacerda, considerado responsável pela morte, por seus ataques a Getúlio.
No horário de visitação íamos ver a recém nascida e a mãe. Chegávamos, os irmãos, até mesmo os de braço, levados pela tia Dayse. Vínhamos da casa de minha avó, Josefina Moreira, na rua do Passeio, para onde nos mudávamos quando minha mãe estava nos dias de descansar. O hospital ficava na rua do Norte, perto dali. Eu chegava curioso, olhava para as duas e me punha a pensar sobre a história da cegonha. Por que a barriga crescia tanto e depois sumia?
Acabada a contemplação da vida nova, voltávamos para casa e continuávamos a ouvir as notícias da morte recente.
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