Rachel

Jornal O Estado do Maranhão
Um dia, os médicos descobrem na adolescente de 19 anos uma doença pulmonar. A mãe, preocupada como todas as boas mães, obriga a filha a ir para a cama às nove horas da noite. O que fazer, se o sono não chega tão cedo e não há luz elétrica na casa de campo da família? As chamas e as sombras dançarinas do lampião aceso a noite inteira bem poderiam libertar esses fantasmas que enchem a imaginação dos jovens e se escondem durante o dia de sol tão brilhante, como o daquela terra seca, quase tão carente de água como estivera em 1915. Mas, nem os fantasmas aparecem nem a moça pensa neles. Pensa, sim, em escrever um livro, falando da estiagem de quinze anos antes, que se revelaria logo, logo, predestinado, pois os livros, como as pessoas também têm sua história e seu destino.
Deita-se de bruços, pega um lápis e um caderno, desses pautados, e começa, aproveitando-se de sua pouca experiência de jornalista precoce, estreante em jornal ao 16 anos, mas valendo-se, também, de suas inúmeras leituras, a escrever O quinze, romance publicado no Ceará em 1930, um marco em nossas letras, de instantâneo sucesso no Sul, mas não em sua terra natal. Ela diria, muitos anos depois, sentir-se perseguida por esse “livrinho”, ao qual tinha, confessava, uma antipatia mortal.
Mas, o “livrinho”, veio a ser considerado fundador do ciclo regionalista do Nordeste na literatura brasileira, ao lado das obras de outros grandes escritores da região. Destes, distinguia-se Rachel, como observou com acerto Carlos Heitor Cony, que repetiu recentemente ser ela a “madrinha de todos os que escrevem neste país”, por “uma certa penumbra machadiana”, numa referência ao seu estilo verdadeiramente moderno, de aparência natural, mas resultante de grande domínio técnico, capaz de manter a emoção sob controle, enxuto, sóbrio, sem excessos romanescos e despojado de arabescos e firulas, muitas vezes meros disfarces para a falta de assunto. Ela mesma disse, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, que de vez em quando se precisa voltar a Machado.
O quinze teve a saudação entusiasmada da intelectualidade da época. “Não é o primeiro livro, decerto, que trata do assunto [a seca]; porém em nenhum outro encontrei tanta emoção, tão pungente e amarga tristeza”, disse Augusto Frederico Schmidt, pioneiro no reconhecimento do valor da escritora, no seu jornal As Novidades Literárias, Artísticas e Científicas.
Depois de sua estréia no romance, Rachel continuou a escrever crônicas, atividade mantida por toda a vida. Dizia sentir-se mais jornalista, sua verdadeira profissão, segundo ela, do que ficcionista. Fica-me a impressão, de ter sido romancista apesar de si mesma, coagida por seu imenso talento, que de tempos em tempos lhe arrancava romances, como João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), Memorial de Maria Moura (1992). Escreveu ainda para teatro.
Uma das características mais evidentes de sua obra está na completa ausência de maniqueísmo. No chamado romance social, geralmente ocorre uma separação bem nítida entre, de um lado, os pobres e bons, e, de outro, os ricos e maus, como na primeira fase de Jorge Amado. Isso não se dá nos romances da cearense desde o início. Foi essa qualidade, por sinal, fonte de sua recusa em aceitar a fórmula feita do realismo socialista, com seus heróis proletários perfeitos, mas inverossímeis, e seus vilões capitalistas prenhes de todos os males morais do mundo, que provocou o rompimento dela com o Partido Comunista.
 Essa grande escritora acaba de morrer. Ela não acreditava em Deus, no gênero humano e na eficácia da literatura em transformar as pessoas. Produziu com essas descrenças uma obra profundamente humanizante. Mas, é justamente por não acreditar em todas essas coisas que se pode perceber a literatura como a possibilidade de salvar-nos da falta de sentido de tudo.
Será exagero de ingênuo esta crença permanente no poder incorpóreo da palavra?

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