Memória
Jornal O Estado do Maranhão
A lei estadual há poucos dias aprovada pela Assembléia Legislativa que tem como objeto retirar da Fundação da Memória Republicana a posse do Convento das Mercês é uma tentativa de atingir José Sarney. Não é uma disputa jurídica, pois a opinião dos mais qualificados juristas maranhenses e de outros Estados diz ser perfeito o ato que convalidou a doação do prédio para a Fundação. A Academia Maranhense de Letras recebeu em doação do governo do Estado, em 1951, o prédio de sua sede na rua da Paz. O governador Sebastião Archer da Silva cometeu alguma ilegalidade ao sancionar a transferência? Haverá neste momento a disposição de aprovar lei retornando a edificação ao patrimônio público, de onde foi retirada de forma legal e legítima, como foi o Convento? Por certo, nós todos seremos julgados com severidade no futuro se essa lei de fato vigorar. A justiça ainda irá se pronunciar com serenidade sobre ela.
Onde está a razão dessa atitude capaz de ameaçar a existência do memorial, protegido por lei federal, de um ex-presidente da República? Em outros países, e mesmo aqui no Brasil, como no caso do Memorial JK, iniciativas como essas recebem o apoio do poder público que se esmera em apoiá-las, por serem importantes fontes de estudo da história. Minas Gerais seria indiferente ou hostil a receber o acervo documental do governo de seus conterrâneos ex-presidentes? Não só o de JK, mas de todos os ocupantes do cargo ao longo de nossa história republicana. E São Paulo e o Rio Grande do Sul? A Califórnia rejeitaria homenagens a Ronald Reagan, um político muito popular, embora não fosse unanimidade naquele Estado americano e nos Estados Unidos, como ninguém é em lugar nenhum?
É evidente que não se trata tão-só do prédio do Convento, de sua parte física, de suas paredes, de seus alicerces, de seu chão, por si só coisas de valor histórico. Está em jogo um patrimônio com suporte material na forma de milhares de documentos oficiais e de livros doados por Sarney de sua biblioteca particular, entre eles obras raras, mapas, vídeos, fotos, filmes, etc., mas, em essência, patrimônio imaterial, intangível, de valor inestimável para nossa identidade como povo, impossível de ser avaliado em termos financeiros. Desejamos apagar nossa própria memória, deletar o passado? O prédio – não se precisa afirmar a necessidade de preservá-lo – estaria em melhores condições se a ele não tivesse sido atribuída sua função de hoje? Será preservado, caso essa lei seja confirmada?
Pretendem atribuir a Sarney a origem dos males do Maranhão. Ora, ela está, em grande medida, no final do século XVIII, quando se consolidou no Estado uma economia bastante concentradora da propriedade da terra e da renda pessoal por conta da aplicação de políticas mercantilistas do governo português encarnado no marquês de Pombal, o que nos deu, na economia brasileira, uma posição secundária com início na Independência no primeiro quartel do século XIX, quando o espaço econômico da nova nação começou a ser unificado e seu centro dinâmico se fixou, por diversas razões no Sul. Sarney sempre fez o máximo em favor do Maranhão, lutando, isso sim, para quebrar limitações estruturais bisseculares da economia maranhense. É crime, isso, sem chance de absolvição? É pecado mortal? Sua biografia está feita e bem feita. Nada nem ninguém poderá mais reescrevê-la.
A política não deveria constituir motivo suficiente para se confundir disputas corriqueiras do jogo democrático, como acontece em todo o mundo, com um vale-tudo que acaba atingindo nossas próprias tradições de cordialidade e civilidade. Não podemos permitir que as novas gerações sejam aculturadas num ambiente desse tipo. Elas precisam ter referências históricas – a trajetória de Sarney na política e na literatura é uma delas –, e culturais a lhes guiar os passos pela vida. Só assim poderemos ter certeza de serem nossos problemas de hoje, apenas assunto de historiadores no futuro.
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