A batalha
Jornal O Estado do Maranhão
Não se ouvia ruído algum quando ele chegava, apesar de seus tamancos, que em outros pés não seriam tão silenciosos, e de o silêncio não ser de seu temperamento de não levar desaforo para casa. Se não fosse pelo cheiro forte da fumaça do Astória recém-acesso (não se fabricavam cigarros com filtro) ou pelo cheiro de nicotina a lhe impregnar as mãos e a roupa, ambos os odores se espalhando pelas horas do amanhecer na residência, ninguém perceberia que ele já abrira o pequeno portão verde (não seria azul?) de madeira em um plano acima do da avenida, subira a pequena escada de cimento em forma de ele que levava ao terraço, tomara à esquerda evitando a entrada principal, caminhara pela comprida área que ia do terraço até o quintal, formada pelo muro e a lateral da casa, e chegara à cozinha pela porta dos fundos para tomar seu café, feito na hora, com o pão que ele mergulhava na xícara, um costume com origem na Baixada Maranhense, em Cajapió, pois de lá viera.
A mudez dos pés vinha de seu corpo magro e pequeno, de ex-jóquei na sua agitada juventude, no Rio de Janeiro, e, quem sabe, da consciência de ser uma espécie de agregado, sem a expectativa de ser integralmente da família, apesar do parentesco e da amizade. Alguém cuidadoso em não perturbar tão cedo o sossego do bangalô recém-construído. Anoitecendo, ou já bem escuro, retornava para sua humilde casa, que não sei se era seu lar, distante poucas quadras, perto da Estrada da Vitória, por onde corriam os trilhos da Estrada de Ferro São Luís-Teresina. Nunca chegamos a ver na televisão sua filha que, ouvíamos curiosos dizerem, era atriz, porque íamos dormir cedo a fim de não chegarmos atrasados à escola na manhã seguinte. Por isso algumas vezes não víamos ele sair, novamente silencioso, a não ser pelo fundo ecoar da tosse de fumante inveterado, depois do jantar.
Não me lembro de o ter visto uma vez sequer fora de nossa casa. Às vezes eu pensava que ele não ia a lugar algum, seu mundo todo estava naquele curto trajeto entre ambientes tão diferentes. Raríssimas vezes fomos à residência dele. Uma delas foi no dia de seu enterro modesto. As rugas acentuadas do rosto e o nariz adunco dos ancestrais mouro-portugueses ainda chamavam a atenção no pequeno caixão de gente do povo.
Ficaram célebres as brigas do meu tio-avô Maneco – esse o seu apelido, derivado de Manuel, nome herdado de seu pai português – com sua irmã mais velha, Marcelina, minha avó materna, no jogo de bisca. Havia uma rivalidade insuperável entre os dois revelada nas coisas mais simples e supostamente sem importância. Ele tinha prazer imenso em “matar a sete” dela. Nada podia ofendê-la tanto quanto essa desfeita inominável. Ela julgava estar isenta da regra do jogo que permite tal desrespeito, sobretudo se partia dele.
Morando ela conosco naquela época, sentavam-se os dois em torno da mesa oval da copa, no meio da manhã ou da tarde, jamais formando uma dupla, olhando-se pelos cantos dos olhos, mas incapazes de abandonar o confronto e a proximidade do rival que o jogo impunha, atraídos e repelidos um pelo outro. Convidavam cada um seu próprio parceiro, na maioria das vezes um dos muitos netos dela, ou uma empregada em momento de folga, e iniciavam a disputa.
Ver suas fisionomias então era contemplar em apenas duas pessoas muitos dos sentimentos atávicos que todos carregamos de nosso passado remoto, quando apenas começávamos a ter consciência de sermos humanos, de astúcia, alerta, medo, incerteza, agressividade. Era como se suas próprias vidas estivessem em jogo naqueles instantes de tensão extrema.
Como última arma da luta, esgotados todas as manobras do jogo, mas, ao mesmo tempo, denunciando a todo mundo por olhares, movimentos do corpo e tiques nervosos quais cartas tinha nas mãos e vendo sua sete ser “morta” por Maneco, que lhe lançava olhares triunfais e sorrisos debochados, ela recorria ao insulto definitivo: “Tu não passas de um urubu, nunca mais jogo contigo”.
No dia seguinte estavam de volta, prontos para recomeçar a batalha.
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