Angústias de vampiros

Jornal O Estado do Maranhão  
Há uma coisa que não surpreende mais ninguém no poeta Luís Augusto Cassas. (Uma vez que deram de chamar poetisa de poeta, bem se poderia chamar o poeta de poeto). São as constantes boas surpresas que seus livros nos fazem. Em cada um, como no último, O vampiro da Praia Grande, seu talento originalíssimo nos oferece algo inesperado, com uma poesia que, sendo universal em sua essência, como toda boa poesia, já o é também no alcance de leitores em todo o Brasil, com sua força indiscutível e o reconhecimento da melhor crítica do país.
Esse permanente surpreender me faz lembrar de João Cabral de Melo Neto: “[...] se pode aprender a escrever,/ mas não a escrever certo livro./ Escrever jamais é sabido;/ o que se escreve tem caminhos:/ escrever é sempre estrear-se/ e já não serve o antigo ancinho./Escrever é sempre o inocente/ escrever do primeiro livro./ Quem pode usar da experiência/ numa recaída de tifo?”.
É isso. Cada livro é sempre uma estréia diante da qual nenhuma receita pode servir de guia. Nem Cassas desejaria uma fórmula industrializada, que pudesse servir de poesia de ocasião, sem alma, sem esse enigma perene, transfigurador do sentido corriqueiro e consuetudinário das palavras, destruidor do automatismo do verbo banal do cotidiano e capaz de dizer o inefável. Esse, o mistério da poesia autêntica como a dele!
Esse artesanato, pois esse efeito único da invenção artística é um artesanato verdadeiro, é muito próprio desse poeta, que já está cansado de demonstrar seu conhecimento seguro da poesia moderna. Ele foge, assim equipado, do provincianismo cultural com sua inevitável entropia brochante, para situar-se numa posição de vanguarda, tanto em conteúdo como em técnica poéticas. E, no entanto, ele nunca se precipita no virtuosismo gratuito, jamais redescobre ingenuamente a roda poética. Isso é de louvar, em uma terra onde se produz muito verso e pouca poesia, onde, para ser poetastro, basta denominar-se a si mesmo como poeta. Nisso, Cassas é uma exceção, entre poucas.
Essa vocação da originalidade é antiga. Nos anos setenta, sendo ele colega de um irmão meu, José Ricardo Moreira, no colégio Marista, era capaz de fazer, a pedido de vários colegas aflitos a fim de livrar-se de suas obrigações escolares, redações diferentes umas das outras, mas sobre um único tema. Em cada uma delas não repetia os textos nem deles fazia paráfrases. (Olha o prosador, aí).
Uma vez, no começo dos anos setenta, resolveu tomar umas cervejas em São José de Ribamar. Na volta, em mais um exemplo de originalidade, resolveu, com o incentivo de João Vicente Abreu, com quem estava, atropelar um trator, quase morrendo, ambos. A estrada do acidente, ao contrário do mar para Gonçalves Dias, não seria a natural sepultura dele. Nem mesmo sepultura seria, da qual pudesse surgir como um vampiro imprevisto quase trinta anos depois.
E esse de agora, da Praia Grande, qual seu significado? Tenho lido análises desse livro, contendo referências a pós-modernismo, ironia, paixão, humor, lirismo, marcas distintivas, de fato, da arte de Cassas. Mas, eu vejo mais: o vampiro como a metáfora da perene angústia humana ante a ausência de respostas às perguntas acerca do sentido da vida, em que pesem as explicações filosóficas e religiosas.
Vampiros podem morrer, apenas se determinadas condições especiais forem cumpridas, como, por exemplo, a entrada de uma bala de prata em seu coração. Contudo, deixados em paz, poderiam viver uma eternidade, o que estabelece uma espécie de instável compromisso entre morrer e viver sempre. O vampiro do poeta escreve memórias, vai ao parque, ao dentista, ao circo, compra em liquidação, faz musculação, como um mortal qualquer. Sua ânsia por descobrir a razão de viver e morrer, porém, é de intensidade mil vezes maior do que a nossa, porque, sendo ele quase eterno, pode, a qualquer momento perecer.
Eis, portanto, o que o vampiro poético de Cassas pode simbolizar: nossas indagações e angústias multiplicadas ao infinito!

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