Acordo Possível
Jornal O Estado do Maranhão, 18/4/2010
A reforma ortográfica da língua portuguesa, de 1911, adotada em Portugal, mas não no Brasil baseou-se em critérios fonéticos. Os etimológicos, usados até então, deixaram de ser usados. Foi o momento de tirar o ph de pharmacia, sc, de sciencia e assim por diante. O Brasil continuou no sistema antigo durante algumas décadas. Começou aí a divergência ortográfica entre o nosso português e o da Europa, ou mais propriamente, o de Portugal e suas colônias, hoje países independentes. Lembremos que a República portuguesa fora proclamada no ano anterior e a mudança ortográfica era uma forma de a nova ordem política diferenciar-se do antigo regime monárquico.
A reação de intelectuais portugueses foi rápida. Alexandre Fontes em A Questão Orthographica, Lisboa, 1910, reagiu assim à reforma que viria no ano seguinte:
“Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (...). Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim!”
Teixeira de Pascoaes, pseudônimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, poeta e prosador português, um dos líderes do movimento conhecido como Renascença Portuguesa, disse:
“Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua ex-pressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; substituindo-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal.”
Lidas hoje, tais reclamações têm um toque ligeiramente cômico e provocam estranhamento, sentimento semelhante, naquela época, ao de parte dos intelectuais portugueses com as mudanças in-troduzidas pela já quase centenária reforma e, mais tarde, ao dos brasileiros, quando o Brasil seguiu os passos de Portugal. Superado o período de adaptação às novas regras ortográficas de 1911, estranho tornou-se escrever lagryma em vez de lágrima. Por isso, não me surpreendem as reações, menos aqui e mais em Portugal, contra as mudanças de agora, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009, ainda não obrigatoriamente, e a vigorar em Portugal mais tarde, e que tem como fim último a maior aproxi-mação ortográfica possível entre os países que têm o português como língua de cultura. As reações sempre foram grandes em todas as reformas. São, assim, algo a ser avaliado como natural, mas passa-geiro, dada a conhecida aversão humana à alteração em velhos hábitos, tornando-os difíceis de serem eliminados. Mas, há outras razões para as resistências.
Cito apenas uma. Não raramente, ouve-se dizer por aí não ser esta a Reforma ideal. Eu chamo tal argumento de idealista. Por Júpiter, também acho que não é. Eu, se fosse autoridade nessa área, eli-minaria toda acentuação gráfica de nossa língua, proposta, aliás, constante do Memorando Sobre o A-cordo Ortográfico da Língua Portuguesa, acordado entre Brasil e Portugal, de 1986, prevendo a unifi-cação em 99,5% do vocabulário geral da língua e que não resultou em nada apenas porque serviu como base do atual. Mais ainda, eliminaria quase inteiramente o hífen, a exemplo da língua espanhola, que o utiliza em pouquíssimos casos esse mal afamado sinal. O problema aparece porque cada participante do debate tem na própria cabeça a reforma ideal. O Acordo de agora, como qualquer outro, se queremos dar algum sentido a essa palavra, é uma solução de compromisso entre acordos ideais, cada um deles produzido do ponto de vista de cada interessado nas mudanças. Ele somente será bom se for bom para todos os participantes das negociações, ou então temos um desacordo, como ocorreu em tentativas an-teriores. A procura do ideal, ora com o Brasil tentando impor seu ponto de vista, ora Portugal, o dele, tornou impossível qualquer entendimento, ou pode-se dizer, resultou em nenhum acordo, o que é ruim e mostra que o ótimo é, de fato, inimigo do bom. O de 1990 é o Acordo possível. Felizmente não é o ideal.
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