O Valente Ibama e o Infiel
Jornal O Estado do Maranhão, 21/3/2010
Eram elas de grandes empresários de outro Estado, na ânsia de saquear nossos recursos naturais? Eram perigosos piratas do litoral da Somália diversificando suas atividades ao iniciar a cata predatória de caranguejo logo aqui? Havia grave ameaça à segurança nacional? Nada disso. Eram barcos de madeira artesanais e tradicionais ainda existentes no Maranhão, enquadrados numa tipologia rara, de ocorrência apenas em nosso litoral. Eles são exemplos de técnicas navais construtivas com séculos de existência e estão ameaçados de extinção. Faz bem o governo Roseana Sarney em preservar tal riqueza por meio do Estaleiro-Escola.
A multa aplicada pelo importante pequeno chefe do Ibama corresponde a várias vezes o valor de cada barco, muito acima da capacidade de pagamento do proprietário, cujo patrimônio são os próprios barcos. Talvez ele tenha desejado “dar um exemplo” aos dissimulados nativos. Vai ver o sujeito não conhece a cultura local nem sua história nem o esforço heróico de sobrevivência desse homem do mar e ache preservação uma babaquice, como o lobby dos fabricantes de embarcações industriais acha. Há pouco, esse pessoal propôs ao Ministério da Pesca a proibição de crédito federal à pesca artesanal sob a conveniente, para eles, alegação de ser ela destruidora das já destruídas florestas brasileiras. Talvez não se lembre o superintendente que esse mesmo Ibama – tão valente, corajoso e rigoroso com pobres homens pobres desprovidos de apoios importantes e de conexões sociais e econômicas influentes – esse mesmo Ibama, eu dizia, dá licenças a grandes e poderosos pelo Brasil todo, sem o rigor utilizado pelo burocrata do Ibama. Pena esta gente não ser usada como mau exemplo.
Não defendo o ato ilegal de violação do defeso. Censuro a atitude insensível, desvinculada da realidade, arrogante, prepotente e injusta do superintendente, típica de quem é ignorante das coisas locais. Como quase todo mundo sabe, nem tudo que é legal é justo ou moral. A lei não pode ser aplicada como se vivêssemos num buraco negro social, em especial quando o legalismo é seletivo.
Apreendidos, dois deles, movidos a vela, ficaram sob a guarda do Estaleiro-Escola do Estado. Não se sabe por que os dois restantes não tiveram a mesma destinação. Equipados com motores de centro, foram levados a São José de Ribamar e permaneceram lá sob a responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente do município, a partir daquele momento sua fiel depositária, por conta de convênio entre a Prefeitura e o Ibama. Fiel? O bem apreendido, é lei, não pode ser utilizado pelo depositário, sob pena do fiel tornar-se infiel. Sabem o que aconteceu? O fotógrafo Edgar Rocha fotografou uma das embarcações em uma praia de São José na ocasião exata de seu retorno de uma viagem de transporte de sururu, não sei de quem. Telefonei ao Secretário de Meio Ambiente do município. Ele me garantiu que o fato não se repetiria. Daí a três dias, não só um deles foi utilizado de novo como teve seu leme quebrado. Não sei quem pagará os prejuízos. Desta vez eu mesmo fiz fotos numa praia de São José das partes danificadas. Junto com as de Edgar as postei aqui no blog.
Eis a severíssima lei: muito rigor contra quem pode pouco e pouco contra quem pode muito. Como dizia o iletrado e folclórico Paraguaçu, o de Dias Gomes, o Odorico: “Eu quero ver é tu brigar valentemente e defrentemente com um maior do que tu”.
(Voltar para as fotos do caso da apreensão dos barcos artesanais pelo Ibama)
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