Cachorro, não

Jornal O Estado do Maranhão

A figura de Waldick Soriano, o cantor do povão, o brega-chique, morto há poucos dias, me traz à lembrança um pedaço de minha juventude. No final dos anos sessenta e começo dos setenta ele costumava se apresentar em muitas cidades do interior do Maranhão e em São Luís. Algumas vezes, esteve no antigo Cine Monte Castelo, em prédio cuja construção acompanhei desde a escavação das valas dos alicerces, pois eu morava a poucos metros do cinema. Lembro sobretudo do final da obra, quando os operários começaram a colocar as telhas na estrutura de madeira projetadas com o fim de sustentar a cobertura. Sentado na copa da nossa casa, um bangalô de classe média típico dos anos cinqüenta, sob os olhares vigilantes de minha mãe, que não nos liberava, a mim e meus irmãos, para as brincadeiras rotineiras a menos que déssemos conta sem vacilações dos deveres escolares do dia, era possível observar, dia a dia, o progresso do trabalho. A mim os trabalhadores pareciam empenhados na montagem de um grande quebra-cabeça com todas as peças do mesmo formato e tamanho, em lento progresso. Eles não executavam o serviço de tal maneira a criar, com as telhas, filas ou colunas de crescimento contínuo. Antes, produziam ilhas esparsas, aos poucos crescendo em direção umas das outras, até que suas bordas se juntassem, formando ilhas maiores, reunidas a seguir a outras, até o trabalho se completar. Os espaços entre elas, eu os via como os de um quebra-cabeça incompleto. Sempre que eu me detinha em contemplar o andamento de tudo aquilo durante um tempo mais longo do que minha mãe achava razoável para o sucesso da missão de chegar à escola sabendo as lições na ponta da língua, ela me chamava à realidade e lá se iam as telhas e a imaginação. Eu tinha a seguir de me voltar para os afluentes do Amazonas, o descobridor Pedro Álvares Cabral, o grito de Independência ou Morte, os verbos e advérbios. Ela foi minha melhor professora, ela mesma dada à leitura dos bons autores e capaz de escrever pequenas peças de teatro, apresentadas nas lojas maçônicas freqüentadas por meu pai. Inaugurado o cinema, logo a pracinha em frente se tornou ponto de encontro dos rapazes do bairro. Íamos lá conversar sobre tudo e nada, fumar cigarros Minister, ou Continental quando o dinheiro encurtava, de lá seguindo até o bar do Nezinho, ali bem perto, ou lugares mais afastados e não recomendáveis. O cinema virava casa de espetáculos com a chegada de um artista popular de fora Carlos Gonzaga, outro “brega”, era um deles, cantando Oh! Carol (gravada mais tarde por Caetano Veloso), Diana e vários sucessos. Outro, era Waldick Soriano, a quem já conhecíamos pelas músicas tocadas nas rádios e em todo lugar, mas também, no meu caso e no de alguns dos companheiros, pelas notícias, dando conta de supostos filhos que ele teria ao longo da Estrada de Ferro São Luís-Teresina, que ouvíamos nos trens e em Pirapemas, onde íamos passar férias, na casa do amigo José Novais, hoje médico. Waldick, ídolo do povo simples, que gosta de ouvir canções de dor-de-cotovelo, sem nenhuma vergonha, como um tipo de catarse das agruras do cotidiano, servia, vejo isso com a visão de hoje, como uma espécie de antídoto contra a influência exagerada da música com pretensões legítimas à sofisticação, como a bossa-nova, de grande prestígio numa relativamente pequena classe média da época, mas desconhecida das massas, servindo, para nós, à formação de um gosto musical de raiz popular e mais amplo. Como acontece com freqüência, o brega de hoje pode ser o cult de amanhã. Veja-se o exemplo, no cinema, de Zé do Caixão. Releituras de Waldick já ocorrem. Sua Tortura de Amor foi gravada por Fagner (Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti...). Brega ou chique, cachorro não é Waldick.

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