Música, por favor

Jornal O Estado do Maranhão

Recebi no fim de 2007 e-mail acerca do reggae maranhense, fenômeno cultural popular sobre o qual tenho feito comentários positivos. O texto, de alta qualidade, como se verá, trata também da Escola de Música de São Luís. É de um doutor em economia, do BNDES, Luiz Alfredo Raposo, excelente prosador e poeta. Transcrevo a mensagem pelo que revela de nossa cultura, vista de fora.
“Lino, em teu artigo de 11/11 último, disseste bem: São Luís fala. Sim, mas, advertem meus botões, São Luís canta (e dança) também... E não apenas o bumba-meu-boi, o tambor-de-crioula, as litanias do Divino. Canta e dança ainda (coisa que a mim intriga e encanta) ritmos caribenhos de sotaque. Sons que o forasteiroteabitante do universo-Maraho de um grave acontecimento: voceu sou, dessas duas deusas. os e pretos de Cabindastas de ritmos no escuta da janela enluarada do hotel (o baixo feito o pulso, o ritmo cardíaco da noite sobre a baía...). É curioso, quem os teria levado até aí? Eles decerto foram item invisível e não-tributável da modesta, semi-proletária cabotagem entre Grão-Pará e Guiana, Barbados, Jamaica, Curaçao: cargueiros e alvarengas no leva-e-traz de madeira e sacaria, e de discos, musicistas e gente comum. Bob Marley deve também ter feito sua parte, anunciando seu evangelho black, rastafári, de estações de rádio de Caiena, Paramaribo, Georgetown; evangelho de que acaso os ouvintes de cá jogaram fora a letra e ficaram consumindo a eloqüência, a melodia. É, para isso servem os vizinhos: para o troca-troca de humanidades, feira livre na qual, haja paz ou guerra, muito ou pouco sempre se vende e compra para auto-consumo. E esse livre-cambismo vai expandindo de praia em praia a humanidade de todos...
Resta, porém, a questão: por que, quando a onda musical do Caribe invadiu o litoral maranhense, encontrou seus habitantes tão predispostos a recebê-la? Seriam os quatro séculos de atração pelo mesmo mar que os orienta, que os chama, como aos de oeste, para o norte magnético? Mar que para uns e outros funcionava como inesgotável despensa e como cinemascope em cuja tela larga vez por outra surgiam, para os olhos cheios de assombro dos de terra, galeões espanhóis de velas coloridas enfunadas, carregados de prata, de especiarias, ou barcos tumbeiros apinhados, ou brigues de piratas? Ou seria a herança comum da mãe-África, que em todos bota ouvidos alertas, atentos aos toques de tribo, e certos impulsos elétricos nas ancas que fazem do simples ir um quase-dançar? Com tudo isso, não teriam teus conterrâneos guardada dentro de si uma centelha daquela específica energia que criou o reggae, o rum, a rumba, esses remelexos todos do Caribe? E afinal que é um reggae? Andante inexorável que não cansa nem apressa, de quem precisa resistir enquanto a noite durar? Responso de gente ativa no eito ─ fala e contrafala, sempre as mesmas, se alternando como uma obsessão ente duas encostas? Concerto em sol/em dor para banda, voz e vocal? Canto profano, às vezes (No Woman no Cry, Mr. Brown, Ten Commandments of Love...) atravessado por um sopro de spiritual?
São perguntas que proponho como sugestões de temas para futuros artigos teus, motivadas pela notícia, que recebi ainda agorinha, da aprovação de um dinheiro do BNDES para a Escola de Música de São Luís. Com o dinheiro, a Prefeitura vai restaurar e mobiliar um sobradão da Praia Grande, e ali aninhar a Escola. Tomara que, melhor instalados, os jovens aprendizes de instrumentistas e de compositores da Ilha venham no futuro a responder com uma safra suplementar, especial, de execuções, de melodias; ou com novas castas de ritmos irmãos do carimbó. Palco para o grande show vocês já têm, cósmico: a Praia Grande, esta vasta jazida de barroco a céu aberto, de rosto para o sol e para as estrelas, com sobradões de azulejo, bicas, escadarias... Andei por suas vielas e nelas encontrei brancos, mulatos e pretos de Cabinda. E eu os vi como condôminos e curadores meio distraídos de tudo aquilo. Pareciam tripulantes de um mesmo barco, funcionários de uma empresa colonial que ainda fosse a dona da velha fábrica reformada onde cada um, segundo seu orçamento, continuasse comprando ventura e desventura...

O projeto deve sua concretização à iniciativa do ex-chefe do Departamento Regional do Banco, Francisco Oliveira, homem de espírito elevado para quem era questão de honra que o Banco apoiasse algum projeto cultural no Maranhão; e ao brilhante trabalho conjunto do presidente da Fundação Municipal de Patrimônio Histórico, José Antônio Viana Lopes, da arquiteta Kátia Bogéa (do Iphan), e das colegas Fernanda Pontual, Isis Pagy e Marta Prochnik, essas irmãs missionárias da cultura. E tem o dedo de dois Raposos: Cursino, teu irmão, e eu. Ficarei satisfeito se acaso encerrar por ele minha vida no serviço público (estou me aposentando). Ou seja, se tudo para mim vier a terminar em música e poesia (em reggae...), fim não digo que merecido, mas certamente que desejado por um perpétuo enamorado, como eu, dessas duas deusas. E dessa Terra Boa de onde me vem um pedaço. [...]. Ass: Luiz Alfredo Raposo, 27/12/07”
Música, por favor, caros amigos.

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