Vôo na manhã

Jornal O Estado do Maranhão
Da sacada vêem-se os prédios modernos, onde muitos anos antes pescadores passeavam seus pequenos barcos a vela e suas redes; vêem-se as ruas, as avenidas, o asfalto, o mangue, a lagoa, o mar e a praia com pequenos seres seminus caminhando aparentemente despreocupados, mas em verdade pensando na vida e em suas armadilhas. Será que ele me ama, divaga a garota e olha o próprio corpo descoberto por um biquíni azul. Ali estão os pássaros, os beija-flores, por exemplo, e também os urubus, em seu passeio matinal, lá no alto, despertando inveja nos caminhantes lá embaixo.
Um dia desses, dia de sol e muito vento, sem nuvem alguma no céu, presente somente o azul, um deles, cujo nome e espécie nunca se chegou a saber (seria descendente de um daqueles que costumavam pousar na pitombeira no fundo do quintal com cheiro de terra, depois do almoço, nas quentes tardes de antigamente, e que – tiro certeiro de baladeira –, morriam sem ao menos sentir a aproximação do caroço de pitomba, bala vegetal?), quis dar uma volta na avenida Litorânea e na cidade. Vinha do porto do Itaqui. Primeiro, ultrapassou a fileira de navios, mensageiros de terras distantes, esperando em fila indiana a vez de atracar, e voou em ziguezague entre eles. Depois, deu uma volta completa em torno de cada um, como a cumprimentar os homens do mar e consolá-los das saudades dos seus. Tão longe de casa se encontram, afinal. Aquele acenando do convés com um sorriso melancólico lembra-se da filha desconhecida que acabou de nascer.
Foi até a Ponta de São Francisco e à da Areia, disse bom-dia à brancura das duas, e finalmente, planou a meia altura de volta à Litorânea. Mirou o canteiro central da avenida como linha de referência e foi até o Barramar, já quase no Olho D’Água. Onde as dunas nas quais as crianças brincavam no passado? Foram os grandes ventos de agosto que as deixaram assim ou os homens? Fez então um semicírculo acrobático, suave e gracioso, e retornou, agora mais veloz, pois vinha a favor do forte vento feito de fortes rajadas, já quentes naquela hora da manhã, não sem antes lançar um olhar em direção ao Araçagi. Tomou novamente a avenida – a bem dizer, tomou apenas uma das infinitas dimensões do espaço a pouco mais de dez metros de altura da pista, talvez, – até chegar ao Calhau. Aí, imaginou deixar em casa, por uma dezena de minutos apenas, a companheira e os filhos, e resolveu ir mais longe, dar uma volta na cidade.
Olhou as pequenas dunas a sua esquerda, fez uma leve curva e aproveitando o vento ascendente que acompanhava o perfil de uma das elevações, quase a tocou, fazendo rápido e leve cumprimento, como os cavalheiros de outrora, antes de elevar-se até alcançar seu topo. Daí, por um instante parado no ar, após breve momento de hesitação, seguiu em direção da cidade velha, após concluir que a família não ficaria exposta à fúria dos elementos, naturais ou humanos. Pareceu não me ver na sacada.Talvez o sol em contraluz, talvez a ansiedade de passear em breve num mundo novo.
Em um bar no térreo de um prédio antigo, com mesas pequenas de metal, dessas fornecidas pelos fabricantes de bebidas, um homem tomava sua cachaça e maldizia a vida, que nada lhe dera e tudo, que sempre fora pouco, lhe tomara. O carteiro, a duas quadras dali, perguntava pelo antigo morador da porta-e-janela antiga. Entrega-se correspondência a mortos? Na ponte que liga a parte velha da cidade à nova, avistou um homem com a barba por fazer, os olhos fixos na água. Não reparou quando o pássaro pousou a seu lado na amurada. Pensaria no abandono pela namorada?
Enquanto voava de retorno a sua casa, pensou, ele também, na existência e seus ardis. Haveria um modo seguro de aprender com a vida, sem essa estranha sensação de desconhecer a própria vida?

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