"Memória da advocacia no Maranhão"

Jornal O Estado do Maranhão 30/9/2007

Milson Coutinho deu a público poucas semanas atrás valioso produto de sua invulgar capacidade de trabalho. Falo de Memória da advocacia no Maranhão, mais um volume de sua já vasta bibliografia, lançado em solenidade comemorativa dos 75 anos de criação da OAB-MA.
A obra cobre os anos que vão do princípio do século XVII – por ocasião das primeiras medidas de implantação do Estado Colonial do Maranhão, quando, nas palavras do autor, “com a instalação da Câmara Municipal e a eleição de dois Juízes Ordinários, ou da Terra, começam a surgir pleitos na esfera judiciária, as chamadas pequenas causas, resolvidas pelos Oficiais da Câmara” –, até 1950.
Na visão de conjunto que Milson oferece aos leitores, junto com dados biográficos de renomados advogados desse longo período, podemos discernir um processo de mudança positiva no sistema legal, que viria se completar, apesar do golpe de 1964, no intervalo entre 1950 e a promulgação da Constituição de 1988, a ser estudado por ele em próximo volume a ser publicado em 2008.

Podemos tomar dois episódios como exemplos das mudanças ocorridas na prática da advocacia nesses séculos, a fim de bem avaliar a distância, não em termos de anos, mas de diferenças institucionais, que nos separa das concepções e práticas legais daqueles tempos antigos.
Um deles está no comportamento de João Mendes de Aragão, primeiro homem de leis com formação superior, neste caso pela Universidade de Coimbra, a ter banca no Maranhão, que até então contava tão só com provisionados. Ele fora juiz togado no Grão Pará, tendo aqui chegado em 1714. Aragão tinha sido, naquela universidade, contemporâneo de Vicente Leite Ripado, que aqui era ouvidor-geral, representante da justiça real e máxima autoridade judicial nos territórios ultramarinos de Portugal. O advogado foi residir na casa do ouvidor. Milson localizou no Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, o documento número 1.159, que entre outras coisas, diz, em denúncia a Lisboa pelos Oficiais da Câmara e diversos moradores de São Luís, em 1716, o seguinte: “Que o dito João Mendes sendo assim como assessor, é, em tudo, diretor das obras do dito ouvidor, sentenciando [o ouvidor] sempre em favor das partes por quem [Aragão] advoga”.
Não vou ao ponto de afirmar a inexistência de cabalas entre juízes e advogados nos dias correntes. Mas, quando elas ocorrem, caracterizam apenas um repugnante desvio da norma, que, apesar de todas as deficiências de nosso ordenamento legal, é tratado de acordo com os ditames dos códigos de leis e processos, embora muitas vezes com irritante lentidão.
Outro exemplo. Os jesuítas opunham-se à Companhia Geral do Maranhão e Grão-Pará. Um deles, padre Bellester, chegou a dizer: “Quem entrar nesta Companhia de Comércio não entrará na de Cristo, nosso Redentor”. O vice-provincial no Maranhão, padre Bento da Fonseca, contratou o bacharel João Tomás Negreiros para representar contra a Companhia na Mesa do Bem Comum, em Lisboa. A representação foi rejeitada e Negreiros, simples autor da petição em nome de seus clientes, foi mandado preso por Pombal para a África por causa da demanda. De lá, solicitou ao rei transferência para Portugal, sendo atendido. Por uma espécie de injustiça divina acrescentada à injustiça terrestre, ele morreu na prisão, destruída pelo grande terremoto de Lisboa em 1755.
O conhecimento de episódios como os deste livro, bom fruto de aprofundadas pesquisas em fontes primárias, como costuma fazer o autor, nos permite avaliar o quanto já se caminhou, não apenas, ou não somente, com relação ao exercício da profissão de advogado, mas, em especial, na administração da justiça, fundamento do Estado democrático de direito.

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