Más obras
Jornal O Estado do Maranhão
Esta semana, os Estados Unidos, através de prepostos do governo do Iraque, enforcaram Saddam Hussein, ex-ditador do país, considerado com justiça um dos mais sanguinários governantes numa região do mundo conhecida por sua violência. Alguns, ou muitos, dirão que ele teve o castigo merecido, estando o assunto encerrado. Não sei se ele merecia a punição cruel e irreversível, mas o assunto não se esgota com a morte dele. Sou contra a pena de morte, por razões que não vou discutir agora. Entre os países desenvolvidos, ela só existe nos Estados Unidos, sendo o Texas, estado de Bush, pródigo no seu uso, inclusive durante seu período como governador. Todos os outros países condenaram a execução, menos a Inglaterra. Sua forma degradante igualou na barbárie os executores ao executado a quem fizeram o favor de abreviar o sofrimento, bem maior caso ele fosse punido com a prisão perpétua. No vídeo que circula na internet, mostrando o ato bárbaro do começo ao fim, pode-se ver, apesar da má qualidade das imagens, e ouvir, mesmo sem entender árabe, um clima tribal de ódio e vingança, presente desde o início do arremedo de processo montado por policiais e juízes treinados pelo governo americano. O tribunal criado às pressas já havia dado o veredito fatal desde antes do início dos procedimentos formais, impondo a justiça dos vencedores. Aliás, esse foi sempre um dos objetivos declarados do cristão renovado George Bush: fazer o que seu pai com muita prudência não quis fazer quando o Iraque invadiu o Kuait e foi expulso de lá pelos americanos. Ficou-me a impressão de serem aquelas cenas grotescas apenas a vingança de uma tribo, a dos xiitas, dominantes no governo iraquiano, contra outra, a dos sunitas, minoria religiosa daquele país, a que pertencia Saddam. Não foi a aplicação impessoal e imparcial da justiça, mas, sim, do primitivo e bíblico “olho por olho, dente por dente”. Em meio a insultos a um homem que estava a segundos da morte e a um bate-boca entre os carrascos e o condenado sem possibilidade de defender-se naquele momento, a não ser verbalmente, como ele o fez, os carrascos xiitas, em nome do mesmo Alá dos sunitas, de repente o calaram, acionando o mecanismo de enforcamento e dançaram de alegria em torno do morto, ainda o insultando e continuando a filmar e fotografar o espetáculo macabro. Ninguém coloca em dúvida os crimes de Saddam nem questiona a justeza de ele ser punido. Não é essa o ponto em debate. Se fosse, teríamos de discutir o destino de outros ditadores de aliados dos Estados Unidos, como o do Paquistão. O que se pedia era o devido processo legal, não um arremedo de julgamento, e o cumprimento da sentença, qualquer uma, menos a de morte, com respeito. Os americanos apressaram-se em eximir-se de responsabilidade pelo crime. No entanto, eles tiveram sob custódia, durante três anos, o ditador e o entregaram sem demora a seus inimigos, amigos dos gringos, poucos minutos antes da execução, sabendo que daí nada decente poderia resultar. Ao agir dessa maneira medieval, em desrespeito a leis internacionais proibitivas da pena de morte, eles chegaram perto de aumentar a estatura, se já não fizeram, de um homem pequeno do ponto de vista moral, brutal e desapiedado, que não irá pagar por todos os seus crimes contra seu próprio povo. Não quiseram sujar as mãos e transferiram a tarefa a nativos ansiosos por cumpri-la. Será surpresa ver-se a imagem de alguém que enfrentou a morte com altivez – até assassinos como ele têm lampejos de dignidade – e não se dobrou, sobrepor-se à de um homem frio e impiedoso? Agora poderá nascer um mártir. Ele assombrará Bush daqui por diante, como um fantasma. Esse não poderá ser enforcado. Dessas más obras, de Bush e de Saddam, também se faz história e se fazem mitos.
Comentários