Davi
Jornal O Estado do Maranhão
Bem se poderia chamá-lo de Vida porque Davi a tem em seu nome, como também nos olhos castanhos, brilhantes, sérios e ao mesmo tempo risonhos e alertas. Ele, curioso, observa tudo à esquerda e à direita, olha para cima e para baixo, e sem que se lhe ouça perguntar nada, pedir explicação de coisa alguma, já faz com o olhar todas as perguntas eternas dos humanos. Depois, quando pede algo, esboça um sorriso ou choro – a distância entre um e outro é pequena –, e agita os braços e mãos pequenas, com um gesto rápido e muito dele que o acompanhará ao longo de uma existência longa e feliz. Quando o vi pela primeira vez há quase três meses pensei nas incontáveis gerações que o trouxeram até aqui com o fim de nos iluminar. As vindouras, do mesmo modo, levarão os filhos, netos e bisnetos dele mais adiante, até o apagar dos tempos. Lembrei então, mirando o passado, de meus pais, avós e bisavós, especialmente do meu bisavô português que não conheci, mas quase o sentindo presente, Manuel Domingues dos Santos, casado com aquela mulher pequenina e frágil, Rita Gaspar, em quem eu percebi o bebê que ela fora noventa e nove anos antes daquele dia em que a vi pela primeira e única vez, poucos dias antes de sua morte, ambos de meados do século XIX, vindos, ele, de terras distantes e, ela, de mais perto, da Baixada Maranhense, a fim de acrescentar sua contribuição à felicidade e a alegria de termos Davi. Olhando depois na outra direção, vi seus filhos, meus bisnetos. Eu poderei, quem sabe, conhecê-los ainda, antes do grande retorno. Eles poderão chegar ao século XXII, pois se vive cada vez mais, embora nem sempre com mais felicidade. Isso não apenas é contemplar quatro séculos, do XIX ao XXII. É viver quatro séculos. Deve ser essa e só essa a significação de se dizer que a vida não acaba com a morte individual. Por isso, eu jamais diria, como o português Saramago na crônica Retratos de Antepassados: “Não me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas”. Não, para mim elas não reinam nem reinarão. Esse fluxo de vida, essa corrente infinita que dá a sensação de eternidade, me permite ver claramente que estou tão perto da multidão dos que vieram quanto dos que virão, não havendo, assim, maneira de as trevas prevalecerem. Eu vejo isso claramente, como se estivessem aqui e agora todos os meus antecessores na aventura de viver e todos os meus infinitos sucessores. As gerações estarão sempre ligadas umas às outras, não importando a que distância no tempo estejam, quantas tenham existido entre uma e outra ou quantas sejam necessárias para despertar em nós a idéia da continuidade da nossa espécie, da permanência do ser humano. O mito de Adão é, por assim dizer, um não-mito, mas não história, e é de fato sábia a longa enumeração de seus descendentes feita no Velho Testamento, livro da milenar sabedoria judaica. Pois agora chegou o tempo de Davi, filho de meu filho, que traz com ele renovação de vida, como se fosse a mesma vida de todos os nossos antepassados, mas ainda assim diferente, única, insubstituível e preciosa. O mundo o olha e ele olha com firmeza o mundo onde lutará contra gigantes filisteus, a exemplo do outro, o rei, e os derrotará, com uma funda na mão e um sorriso nos lábios, e abaterá todos os dragões da maldade, e afastará sem vacilar um minuto sequer todas as ameaças em seu caminho. Construirá uma nação, ainda como o outro, e em todas as circunstâncias será um soberano justo e sábio. Escreverá livros – uma biblioteca inteira –, e nada o afastará da retidão, da justiça, da verdade e da sabedoria. Em tudo ele terá alegrias e nenhuma tristeza, amará e será amado. Estar com Davi é sentir o seu fascínio e esta verdade incontestável: Davi dá vida. Da vida, Davi é dádiva. Ave, Davi.
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