Farsa sulamericana

Jornal O Estado do Maranhão

A tradição de todas as gerações passadas
oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
Karl Marx

Uma vez que Marx saiu de moda, podemos citá-lo sem risco de termos as palavras misturadas com as do esquerdismo infantil ou de mesa de bar. Vamos, então, ao Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte: “Hegel afirma em algum lugar que todos os fatos e personagens de grande importância na história mundial ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farça”. Como o leitor sabe, em dezoito de brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799), pelo calendário da Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte, aproveitou-se da reação de grupos anti-revolucionários ao restabelecimento do Terror, deu um golpe e criou um consulado que, mais tarde, o levou a fundar o Império, tornando-se Napoleão I. Era um filho da Revolução de 1789 açoitando a contra-revolução. Em 1851, Luís Bonaparte, , sobrinho de Napoleão I, e então presidente da República estabelecida após a abdicação do rei Luís Filipe, fundou o Segundo Império, como reação a reivindicações do operariado francês, por meio de outro golpe. Marx percebeu a farsa contida neste, tentativa de repetição, com sinais invertidos, do primeiro, que ao segundo forneceu a simbologia do nome Bonaparte encarnada no sobrinho, mas não, por ser impossível, as mesmas circunstâncias. Por isso, chamou o segundo golpe de Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte.
Na América do Sul, vivemos hoje acontecimentos semelhantes, de características farsescas. Tenta-se repetir, no século XXI, acontecimentos do XIX, quando os países da região alcançaram independência política. Basta prestar-se atenção à retórica independencista dos dirigentes da Venezuela e Bolívia, presente nas alusões a Simón Bolívar, para se compreender o momento atual. Eles se comportam como se a história tivesse início com sua ascensão ao poder, o que implica a ausência de história, ou pretendem refundar a nação com seus dotes de clarividência, empatia social e o que chamam de vontade política, contra os vendilhões da pátria, algo, como se vê, de conotação religiosa, porque opõe aqueles com chances de salvação no altar patriótico aos condenados por imperdoáveis pecados contra o povo.
Fala-se em soberania nacional, direito às riquezas naturais, integração sulamericana – por certo num sindicato da pobreza –, estatização e nacionalização, idéias há muito presentes no imaginário das massas excluídas da região, bem exploradas, as idéias e as massas, por esses Grandes Pais em benefício de projetos de poder. Tal retórica é componente essencial do receituário que causou, onde triunfou, embora por tempo breve, aumento e não diminuição da miséria. É populismo anacrônico, que pode ser de esquerda e de direita, mas tem sempre os olhos voltados para o passado, não com o fim de aprender, mas de repeti-lo como farsa, incentivada no caso da Bolívia pelo posicionamento dúbio do Brasil contra seus próprios interesses. Não há exemplo de êxito econômico-social desse pensamento. A Argentina foi país de primeiro mundo até a ascensão do populista Perón, que a jogou na vala comum do atraso. A Bolívia estatizou em 1937 e 1969 seus recursos minerais, sem aumento de um tostão sequer na renda dos bolivianos. Nada será diferente com a estatização do gás natural agora.
É ainda Marx quem pode ajudar: “E justo quando eles [os vivos] parecem empenhados em revolucionar a si mesmos e as coisas, em criar algo que não havia existido ainda [...] eles ansiosamente convocam para seu serviço os espíritos do passado e tomam deles emprestados nomes, gritos de guerra e costumes, a fim de apresentar a nova cena da história mundial neste disfarce reverenciado há tanto tempo e nesta linguagem de empréstimo”. Nada mais atual.

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