As memórias

Jornal O Estado do Maranhão

Há poucas semanas falei da confusão entre realidade e ficção enraizada na política nacional, ao considerar o caso da quebra ilegal de sigilo bancário de um caseiro que acusara o ministro da Fazenda de freqüentar com regularidade certo local suspeito em Brasília. Concluí que o mordomo do ministério era o culpado do crime. No entanto, como a realidade dele era ficcional, achei um culpado alternativo, o porteiro. Sendo este real, onipresente nos prédios públicos de Brasília, tornou-se um tipo ideal, abstrato, ficcional. Se tudo isso parece confuso é porque sempre ocorre essa mistura de realidade com ficção, que provoca imenso fascínio sobre as pessoas.
Vejamos algumas idéias de Umberto Eco sobre a memória, que tem muita coisa em comum com a ficção. Ele é especialista em filosofia medieval, professor de semiótica, (a ciência das representações que leva em conta os signos sob todas as sua manifestações), e festejado romancista de O nome da rosa. Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, resultado de conferências na Universidade de Harvard em 1993, no sexto capítulo, Protocolos  Ficcionais, ele diz: “Nosso relacionamento perceptual com o mundo funciona porque confiamos em histórias anteriores”. Qual o significado dessa afirmação? É isto. Aceitamos como verdadeiras as histórias que nos são transmitidas. O fato de não estarmos presentes na Alemanha por ocasião da queda do Muro de Berlim ou ao lançamento pelos Estados Unidos de bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, não nos faz duvidar  da realidade desses acontecimentos.
Não é difícil ver, após tomarmos em consideração essas observações, algo corriqueiro, contudo quase imperceptível: vivemos com duas memórias.Uma é a nossa, individual, que torna possível dizer: “ontem eu comprei a biografia Stálin – A corte do czar vermelho, de Simon Montefiore”; outra, de início completamente separada da minha, é a de um conjunto de pessoas, que me diz que nasci em São Luís no Hospital Português no ano de .... É a memória coletiva  Eu não “presenciei” minha chegada ao mundo. Tenho de me valer dos outros a fim de saber o local e o dia de meu nascimento e, afinal, acabo tornando a memória deles parte da minha.
Quantas vezes, aqui neste espaço, tenho duvidado, ao falar de minha infância e juventude, da veracidade de minhas próprias lembranças, porque, com freqüência, não consigo identificar a origem delas. São minhas mesmo, nasceram de minha experiência, ou representam um a memória coletiva familiar incorporada à minha depois de determinado fato não vivido por mim? Faço-me muitas vezes essa pergunta nessas ocasiões, mas quase sempre não chego a conclusão esclarecedora e acabo achando que posso ter empulhado meu eventual leitor. No entanto, o esforço de separá-las é inútil, pois jamais se consegue fazê-lo por completo.
“Esse emaranhado de memória individual e memória coletiva prolonga nossa vida, fazendo-a recuar no tempo, e nos parece uma promessa de imortalidade”, diz Eco. Eu consigo “ver”, em seu comércio na Praça João Lisboa, meu avô Lino Antônio Moreira, morto nos anos trinta do século XX, muito antes de eu nascer, graças à memória coletiva de minha família. O texto ficcional tem poder semelhante de reconstituir um passado de outra forma desconhecido para nós e de nos fazer descobrir um mundo que estaria além de nosso alcance. Daí seu imenso fascínio.
Quando me perguntam se algum dia vou ler todos os livros de ficção de minha biblioteca, e mais os outros, milhares deles, digo que não sei. Sei que quando quero descobrir novos mundos e recuar no tempo até a origem do universo, eles estão ali do lado, em silêncio aparente, ao alcance de minha mão, prontos a me acompanhar na viagem.

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