Outra casa, outra vida

Jornal O Estado do Maranhão

A expansão de São Luís, até meados dos anos 60 do século XX, se dava no eixo que, saindo da rua Grande, passava pelo Monte Castelo até chegar ao Anil, em continuação de tendência que vinha de meados do século XIX. As construções , no governo José Sarney, da barragem do Bacanga, da margem direita à esquerda do rio Bacanga, e da ponte do São Francisco, ligando o centro histórico à margem direita do rio Anil, reorientaram esse movimento. Espaços de ocupação urbana se abriram naqueles locais antes isolados, o que deu origem a novos bairros. Era uma nova cidade brotando, com taxas elevadas de crescimento, ao tempo em que a antiga experimentava baixo crescimento e era obrigada a permanecer com atividades econômicas de pouco dinamismo.
No início dos anos 50, quando o Monte Castelo ainda se beneficiava daquela tendência secular, meus pais decidiram ali construir uma casa, sob veemente protesto de minha avó paterna, que não admitia a mudança para “aquele fim de mundo” de ruas poeirentas, mesmo que servido por bondes e outros transportes coletivos. Em todo caso, aquele era um dos bairros do futuro.
A lembrança é tão antiga – eu tinha por volta de quatro anos –, que, às vezes, penso tratar-se apenas de algo reconstruído pela memória, a partir de fotografias antigas, daquelas tiradas habitualmente por meu pai, com sua máquina Kodak, e levadas às casas fotográficas para a revelação, que ficava pronta, em preto e branco, só depois de vários dias de espera angustiante.
Vejo-me agora num dia de luminoso sol matinal em visita à construção, levado pelo meu pai, quem sabe já prestando atenção nos beija-flores e bem-te-vis que tanto me fascinariam depois, mas não me impediriam de, pelo uso de baladeiras carregadas com caroços das pitombas tiradas da árvore do quintal, interromper-lhes para sempre o vôo ou surpreendê-los nos galhos das árvores, ilusórias e mortíferas estações de descanso em momentos como aqueles. (Inconsciência da morte ou instinto de predador disfarçado de ser moral?).
O barro, o cimento, a areia, sob a forma de massa de construção, os alicerces, as paredes sem reboco, tudo está lá, mas num segundo não mais. Onde antes havia tão-só esse amontoado de materiais, vejo-me no quarto grande com várias camas, a minha e as dos irmãos, alguma vez me embalando numa rede feita no interior (Cajapió?), olhando o assoalho com seus tacos amarelos e pretos, dispostos em desenhos geométricos, alguns deles certa vez afundados pelas machadinhas dos bravos guerreiros de uma tribo de índios (Sioux?), grande novidade do Carnaval, sentindo o cheiro de cera Parquetina que lhes dava brilho e ameaçava derrubar quem neles pisasse distraído. Era um bangalô como diversos que se construíam então no Monte Castelo e outros lugares da cidade. Passo por lá estes dias e sinto a perda do charme de classe média do bairro. As antigas residências da avenida Getúlio Vargas são agora ocupadas por pequenos prestadores de serviço. As coisas parecem desarrumadas e decadentes para meu gosto burguês.
Pesa-me acima de tudo, porém, ver a casa com alma estranha, onde se contabilizam pequenos lucros. O barro, o cimento e a areia transformados em massa, as paredes agora em cores estranhas, as portas, as janelas, o telhado escurecido pelo tempo e pela falta de um cuidado tão presente antes, tudo continua lá, até o prédio do Senai olhando do outro lado da avenida, mas é como se nada estivesse mais. Ninguém reconhecerá naquela a mesma casa. Onde as festas de aniversário na sala, os papagaios no ar, a Copa do Mundo no rádio, o ruído no cimento da água de chuva dos beirais, os jogos de botão na copa e, no quintal, os de borroca e os de bola de meia, onde essa vida toda, a não ser na lembrança? É outra, sim, a casa, a vida é outra.

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